A pesquisa científica em células-tronco embrionárias humanas vem despontando, no limiar deste novo século, como a grande promessa da biomedicina. Nesse contexto, parte da ciência acredita que o procedimento será capaz de revolucionar a medicina convencional e de mudar a face da saúde humana.
A despeito dessa expectativa, cumpre considerar que se por um lado essas técnicas representam a esperança de cura para inúmeras enfermidades, por outro lado os riscos que o procedimento acarreta, tanto no que diz respeito à vida humana individualmente tutelada, quanto no que concerne ao ser humano enquanto espécie a ser preservada, não consubstanciam meras expectativas. Ao contrário, são reais e verificáveis, dentre os quais destacamos a destruição do embrião, a instrumentalização do ser humano e a alteração do patrimônio genético.
Com relação à destruição do embrião, a controvérsia que se estabelece é freqüentemente retratada como um conflito entre o progresso tecnocientífico e os sentimentos religiosos reacionários. Tentando evitar essa visão reducionista e esse discurso maniqueísta, cumpre-nos analisar a questão e os dilemas que ela suscita sob o ponto de vista jurídico. Isso porque no cerne da questão está a necessidade de determinar em que momento a vida humana tem seu início, e a partir de que momento ela adquire o status de um bem jurídico a ser tutelado, isto é, de um direito a ser respeitado.
Mera escolha?
Nesse sentido, com o intuito de afirmar a legitimidade dessas pesquisas, algumas teorias científicas relacionam, arbitrariamente, o início da vida humana à simples escolha de uma das fases que vão se impondo no decorrer do desenvolvimento embrionário. Desse modo, para uns a vida se inicia por volta da décima segunda semana de gestação, quando surgem os primeiros indícios de atividade cerebral. Para outros, somente após a nidação, que consiste na fixação do óvulo fecundado no útero materno, é que se poderia falar em vida. O ordenamento jurídico brasileiro, todavia - conforme consta do art. 2º do Código Civil - filia-se à teoria concepcionista.
Amparada pela embriologia, a área da biologia que estuda o desenvolvimento do embrião, a teoria concepcionista defende a tese de que, a partir da fusão das duas células germinativas (espermatozóide e óvulo), provenientes de organismos diferentes – masculino e feminino -, deve ser aceita a existência de um novo ser, sobretudo por ser ele dotado de um sistema único e completamente distinto daqueles que lhe deram origem.
A primeira célula desse novo ser recebe o nome de zigoto. O zigoto, embrião humano de uma só célula, possui uma identidade genética individual, perfeitamente distinguível dos demais. Cada embrião humano, desde o momento da concepção, já é geneticamente homem ou mulher e já contém todas as características pessoais de um ser humano adulto, tal como grupo sangüíneo, cor da pele, olhos etc., exceção feita no caso de gêmeos idênticos e de clones, por enquanto hipotéticos. O embrião é, pois, único e irrepetível.
Repetindo o óbvio
Assim, destacamos o posicionamento de alguns ilustres representantes da área médica como o professor de genética fundamental Jérôme Lejeune, pesquisador mundialmente reconhecido por seus estudos em genética humana e cientista responsável pela descoberta da causa da Síndrome de Down, que assinala:
“Não quero repetir o óbvio, mas na verdade a vida começa na fecundação. Quando os 23 cromossomos masculinos se encontram com os 23 cromossomos femininos, todos os dados genéticos que definem um novo ser humano já estão presentes. A fecundação é o marco da vida”.
Do mesmo modo, a geneticista Elaine S. Azevedo assevera: “É biologicamente inexistente e tecnicamente impossível promover a geração de um ser humano a partir de outro momento qualquer do desenvolvimento embrionário. O ponto inicial é a formação do zigoto; é o estágio unicelular. Por mais tecnicamente arrojadas que sejam as técnicas de fertilização in vitro, todas elas partem da fertilização, conforme o próprio nome indica. Essas evidências levam à conclusão de que a reprodução humana ou in vitro não oferece começos alternativos, toda ela se inicia com uma única célula. Conseqüentemente, o zigoto é vida humana em início”.
Portanto, se a ciência admite que há vida no embrião humano e a Constituição Federal consagra essa vida em seu artigo 5º como um direito fundamental, inviolável, imprescritível e inalienável, pressuposto e fundamento para o exercício de todos os demais direitos, do ponto de vista jurídico torna-se evidente que a Lei 11.105 de março de 2005, que autoriza o uso de células-tronco embrionárias humanas para fins de pesquisa e sobre a qual pesa uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, deve ter sua insconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal.
Renata da Rocha é mestre em filosofia do direito e do Estado e especialista em direito contratual, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Atua nas áreas da teoria geral do direito, teoria geral do estado, bioética e biodireito. É professora-associada do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) e autora do livro "O direito à vida e a pesquisa científica em células-tronco: limites éticos e jurídicos" (Editora Campus Jurídico)