A Justiça Federal homologou na última quinta-feira (25) acordo que busca pôr fim a conflitos que se estenderam por décadas entre o Exército e a comunidade autodeclarada quilombola do Forte Príncipe da Beira, no município de Costa Marques, em Rondônia, na fronteira com a Bolívia.
O objetivo da medida, considerada histórica pelos envolvidos, é que a convivência entre os militares e as famílias possa se basear em um plano de uso da área que permite o equilíbrio entre os interesses de todos, possibilitando o pleno desenvolvimento das atividades militares e do modo de vida tradicional da comunidade.
O acordo estabelece regras claras sobre a caça, a pesca, o uso de áreas de plantio e cultivo de roças e de criação de animais, o extrativismo vegetal, as manifestações culturais coletivas, as atividades de turismo e a utilização de portos.
Também foram definidas diretrizes sobre as autorizações para construção, ampliação ou reforma de moradias, a aplicação e o investimento de recursos públicos na área urbana do distrito, o direito de transitar em área militar, e o estacionamento e guarda de veículos.
Foi estabelecido, ainda, um protocolo para a resolução de eventuais conflitos que vierem a ocorrer. O Ministério Público Federal (MPF) vai participar da comissão prevista nesse protocolo.
O acordo foi assinado por representantes do MPF, associação quilombola, Exército, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SNPPIR), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Na audiência em que o documento foi homologado pelo juiz federal Marcelo Elias Vieira, da Justiça Federal em Ji-Paraná (RO), a SNPPIR se comprometeu a promover capacitação para os quilombolas e os militares sobre os termos do acordo. A capacitação deve ser realizada dentro de 60 dias. A secretaria estuda a possibilidade de também promover um curso sobre mediação de conflitos.
Ação do MPF – A homologação do acordo encerra um processo judicial aberto em 2014 a partir de ação ajuizada pelo MPF. A ação cobrava da União e do Incra a realização de estudos sobre a demanda de regularização fundiária da área como quilombola, e de medidas para a interrupção dos conflitos entre o Exército e a comunidade tradicional.
No processo, a União concordou em autorizar o Incra a ter acesso à área para que possam ser realizados os estudos para a composição do Relatório Técnico de Identificação e Demarcação (RTID). O trabalho está em andamento.
O acordo serve para conciliar os interesses do Estado Brasileiro à necessidade de garantia da sustentabilidade das famílias também no caso do reconhecimento oficial dos moradores como quilombolas. O estabelecimento dessa conciliação, quando envolvidas famílias quilombolas, é obrigatório por lei.
“Alegria de ver um filho nascer” – Embargado pela emoção, durante a reunião de assinatura do acordo o presidente da Associação Quilombola de Forte Príncipe da Beira, Elvis Cayaduro Pessoa, foi às lágrimas e não conseguiu encontrar palavras para descrever a emoção que estava sentindo. Depois que conseguiu se recompor, definiu o momento como tão alegre quanto o do nascimento de um filho.
“Celebramos uma conquista”, comemora “A persistência nos uniu e chegamos até aqui”, frisa o presidente da associação, agradecendo o empenho de todos os integrantes das instituições que contribuíram para a realização do acordo.
Outro integrante da associação quilombola, Amaury Antônio Ribeiro de Arruda, vice-prefeito de Costa Marques, festejou a assinatura do acordo como um grande passo para a efetivação definitiva da meta das famílias tradicionais de que a área seja demarcada como quilombola. Para Arruda, a atuação do MPF tirou a comunidade da invisibilidade e fez com que todo o esforço dos quilombolas “fosse reconhecido de forma grandiosa”.
Segundo o tenente Marlon Barros da Silva, a assinatura do termo de acordo judicial deixa claro que o Exército Brasileiro está empenhado em cumprir um dos objetivos estratégicos da instituição, que é o de ser o “braço forte e a mão amiga” do país.
O elemento “braço forte” dessa atuação é atendido pela manutenção das fronteiras e do combate aos crimes transfronteiriços e ambientais na região, e a “mão amiga” fica caracterizada pela continuidade do apoio do Exército – com a prestação serviços como os de saúde e segurança, geradores da paz social – a uma comunidade que simboliza a história dos brasileiros, constituída por pessoas que trabalham e querem o melhor para suas famílias, explica o militar.
“O acordo firmado neste 25 de julho de 2019 entre o Exército e a Comunidade do Forte Príncipe da Beira é um acordo sem precedentes em nossa história e deixa claro que o Exército continuará na defesa de nossa faixa de fronteira, se fazendo presente, e que sempre buscou e sempre buscará o melhor para o país e para o povo brasileiro”, acentua.
Segurança jurídica para todos – O MPF considera que o acordo trará significativos avanços à comunidade quilombola, que vai poder se desenvolver com mais autonomia e independência em suas atividades, bem como também vai garantir ao Exército que exerça as suas funções de um modo mais harmonioso com a comunidade ali presente, destaca a procuradora da República Thais Araújo Ruiz Franco.
“Esse acordo é importante porque ele traz segurança jurídica para a relação existente entre o Exército e a comunidade do Forte Príncipe da Beira, o que certamente vai diminuir os conflitos e vai criar um mecanismo para que esses impasses, esses conflitos, sejam resolvidos”, explica o procurador da República Murilo Rafael Constantino.
Ele também assinala como consequências positivas do acordo a possibilidade de maior autonomia e liberdade para o desenvolvimento das atividades da comunidade, e a continuidade do cumprimento da missão constitucional do Exército, de patrulhamento da área e garantia da segurança nacional.
Além de ressaltar que o acordo foi resultado de um trabalho de muitos anos, o procurador da República Alexandre Ismail Miguel aponta a importância da medida como um indicativo de que estão sendo quebradas as barreiras aos estudos relativos à demanda de regularização fundiária feita pelos quilombolas, e que as instituições públicas brasileiras estão entrando em um consenso para atuarem servindo a população local e respeitando os direitos a ela reconhecidos.
A ação judicial ajuizada pelo MPF e as reuniões e visitas à comunidade promovidas pela instituição foram essenciais para o sucesso do acordo, acrescenta o procurador da República Henrique Felber Heck.
Atuaram pelo MPF no caso, ainda, os procuradores da República Daniel Fontenele Sampaio Cunha e Leandro Zedes Lares Fernandes.
Os representantes da associação quilombola, do Incra e das outras instituições participantes do acordo também fizeram questão de sublinhar a importância para o sucesso das negociações que significou o trabalho do servidor do MPF José Ricardo Zorzi, analista do Ministério Público da União (MPU) na área de Direito.
Modelo para outros acordos – O secretário adjunto da SNPPIR, Esequiel Roque do Espírito Santo, considera o acordo um modelo a ser replicado em outros conflitos existentes no país.
“Entendo que esse protocolo de convivência já se tornou um projeto modelo, que vai ser replicado em outros conflitos espalhados pelo país. Nós já temos em mente a situação do quilombo de Morro dos Macacos, na Bahia, onde há um conflito entre a comunidade quilombola e a Marinha. Vamos usar isso como modelo, um projeto-piloto para ser implementado lá também, adaptado à realidade de lá. Temos a situação do quilombo em Alcântara, no Maranhão, onde tem a base de lançamento de foguetes, onde há o tratado internacional de salvaguarda da base espacial, a gente precisa trabalhar também em um protocolo de convivência entre a aeronáutica e a comunidade quilombola, e várias outras situações de conflitos que existem no país que poderão ser trabalhadas através desse modelo que foi criado aqui no estado de Rondônia”, adianta.
O coordenador do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra em Rondônia, William dos Santos Ramos Coimbra, também espera que o termo de convívio sirva de exemplo para a elaboração de regulamentos semelhantes em outras áreas onde vivem comunidades tradicionais, pois, segundo ele, permite a liberdade de produção, de crescimento e de melhoria de qualidade de vida dessas comunidades.
Em nome da presidência do Incra, da superintendência da autarquia em Rondônia e de diversos setores envolvidos, tanto os de Brasília quanto os da unidade estadual do órgão, Coimbra parabenizou a associação quilombola, todos os moradores da comunidade, e todos os membros e servidores das instituições responsáveis pelas negociações.
Saiba mais – A região do vale do Guaporé, em Rondônia, é marcada pela territorialidade negra, com a existência de uma série de comunidades remanescentes de quilombos formadas em decorrência do período colonial e da ação bandeirante, que desbravou a floresta amazônia no seu limite com a Bolívia em busca de ouro e pedras preciosas, relata o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, produzido pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde.
Dentre essas comunidades está o quilombo Forte Príncipe da Beira. A formação da comunidade está ligada à construção do Forte Príncipe da Beira, quando mais de 360 escravos trabalharam na edificação da obra, ainda no século 18.
A localidade do Forte Príncipe da Beira era uma comunidade composta de civis e militares, com cerca de 700 moradores. Ali existiam hortas, pomares, pequena criação de gado e posto fiscal. No entanto, a insalubridade foi um fator determinante para o despovoamento do local, que foi atingido por epidemias de doenças, restando apenas a população de ex-escravos, informa a publicação.
O forte, que ficou abandonado por muitos anos, foi reocupado pelo Exército Brasileiro na década de 1930. Desde então surgiram conflitos relacionados à convivência entre o Exército e a comunidade quilombola nesta mesma área.
Hoje, a comunidade quilombola abriga aproximadamente 310 moradores. Desde agosto de 2005 é reconhecida e registrada pela Fundação Cultural Palmares (FCP), vinculada ao Ministério da Cultura, registra a publicação da Fiocruz.
Processo nº 0006050-05.2014.4.01.4101 – 2ª Vara da Justiça Federal em Ji-Paraná (RO)
Fonte: Gente de Opinião.com
Foto: Maria Celina Pereira de Carvalho/Incra