JUÍZO DA SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE JI-PARANÁ DETERMINA QUE MUNICÍPIOS SOB SUA JURISDIÇÃO PROCEDAM A RELOCAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM DO GRUPO DE RISCO EM ATIVIDADES ADMINISTRATIVAS, CLÍNICAS OU LOCAIS EM QUE NÃO HAJA ATENDIMENTO A PACIENTES SUSPEITOS OU CONFIRMADOS COM CORONAVÍRUS
Ação Número: 1002207-05.2020.4.01.4101
Classe: AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL
Órgão julgador: 1ª Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Ji-Paraná-RO Última distribuição : 06/05/2020
Valor da causa: R$ 1.000,00
Assuntos: Hospitais e Outras Unidades de Saúde
Segredo de justiça? NÃO
Justiça gratuita? NÃO
Pedido de liminar ou antecipação de tutela? SIM
Justiça Federal da 1ª Região PJe - Processo Judicial Eletrônico
Partes Procurador/Terceiro vinculado
CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM DE RONDÔNIA (AUTOR)
GABRIEL BONGIOLO TERRA (ADVOGADO)
MUNICIPIO DE ALTA FLORESTA D'OESTE (RÉU)
MUNICIPIO DE PRIMAVERA DE RONDÔNIA (RÉU)
MUNICIPIO DE ALTO ALEGRE DOS PARECIS (RÉU)
MUNICIPIO DE JI-PARANA (RÉU)
MUNICIPIO DE ROLIM DE MOURA (RÉU)
MUNICIPIO DE ALVORADA D'OESTE (RÉU)
MUNICIPIO DE MINISTRO ANDREAZZA (RÉU)
MUNICIPIO DE SANTA LUZIA D'OESTE (RÉU)
MUNICIPIO DE MIRANTE DA SERRA (RÉU)
MUNICIPIO DE SAO FELIPE D'OESTE (RÉU)
MUNICIPIO DE CACOAL (RÉU)
MUNICIPIO DE NOVA UNIAO (RÉU)
MUNICIPIO DE SAO FRANCISCO DO GUAPORE (RÉU)
MUNICIPIO DE CASTANHEIRAS (RÉU)
MUNICIPIO DE NOVO HORIZONTE DO OESTE (RÉU)
MUNICIPIO DE SAO MIGUEL DO GUAPORE (RÉU)
MUNICIPIO DE OURO PRETO DO OESTE (RÉU)
MUNICIPIO DE SERINGUEIRAS (RÉU)
MUNICIPIO DE PARECIS (RÉU)
MUNICIPIO DE TEIXEIROPOLIS (RÉU)
MUNICIPIO DE URUPA (RÉU)
MUNICIPIO DE VALE DO PARAISO (RÉU)
MUNICIPIO DE COSTA MARQUES (RÉU)
MUNICIPIO DE PRESIDENTE MEDICI (RÉU)
MUNICIPIO DE NOVA BRASILANDIA D'OESTE (RÉU)
Ministério Público Federal (Procuradoria) (FISCAL DA LEI)
CLASSE: AÇÃO CIVIL PÚBLICA CÍVEL (65)
AUTOR: CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM DE RONDONIA
Advogado do(a) AUTOR: GABRIEL BONGIOLO TERRA - RO6173
RÉU: MUNICIPIO DE ALTA FLORESTA D'OESTE, MUNICIPIO DE PRIMAVERA DE RONDONIA, MUNICIPIO DE ALTO ALEGRE DOS PARECIS, MUNICIPIO DE JI-PARANA, MUNICIPIO DE ROLIM DE MOURA, MUNICIPIO DE ALVORADA D'OESTE, MUNICIPIO DE MINISTRO ANDREAZZA, MUNICIPIO DESANTA LUZIA D'OESTE, MUNICIPIO DE MIRANTE DA SERRA, MUNICIPIO DE SAO FELIPE D'OESTE, MUNICIPIO DE CACOAL, MUNICIPIO DE NOVA UNIAO, MUNICIPIO DE SAO FRANCISCO DO GUAPORE, MUNICIPIO DE CASTANHEIRAS, MUNICIPIO DE NOVO HORIZONTE DO OESTE, MUNICIPIO DE SAO MIGUEL DO GUAPORE, MUNICIPIO DE OURO PRETO DO OESTE, MUNICIPIO DE SERINGUEIRAS, MUNICIPIO DE PARECIS, MUNICIPIO DE TEIXEIROPOLIS, MUNICIPIO DE URUPA, MUNICIPIO DE VALE DO PARAISO, MUNICIPIO DE COSTA MARQUES, MUNICIPIO DE PRESIDENTE MEDICI, MUNICIPIO DE NOVA BRASILANDIA D'OESTE
DECISÃO
1. RELATÓRIO
Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM DE RONDÔNIA – COREN/RO em desfavor dos Municípios de ALTA FLORESTA D´OESTE, PRIMAVERA DE RONDÔNIA, ALTO ALEGRE DO PARECIS, JI-PARANÁ, ROLIM DE MOURA, ALVORADA D´OESTE, MINISTRO ANDREAZZA, SANTA LUZIA D´OESTE, MIRANTE DA SERRA, SÃO FELIPE D´OESTE, CACOAL, NOVA UNIÃO, SÃO FRANCISCO DO GUAPORÉ, CASTANHEIRAS, NOVO HORIZONTE DO OESTE, SÃO MIGUEL DO GUAPORÉ, OURO PRETO DO OESTE, SERINGUEIRAS, PARECIS, TEIXEIRÓPOLIS, URUPÁ, VALE DO PARAÍSO, COSTA MARQUES, PRESIDENTE MÉDICI e NOVA BRASILÂNDIA D´OESTE, objetivando, em sede de pedido de urgência, que os requeridos garantam o afastamento voluntário dos profissionais de enfermagem lotados em suas Unidades de Saúde, que estejam no grupo de risco para as complicações pelo COVID-19 ou, alternativamente, sejam os profissionais remanejados para atuar em setores que apresentem menores riscos, nos quais não seja realizado atendimento direto a pacientes suspeitos ou com diagnóstico confirmado de COVID-19.
Sustenta, em síntese, que diante da pandemia causada pelo COVID-19, os profissionais de enfermagem do sistema público de saúde, indistintamente, estão sendo tolhidos do afastamento de seu local de trabalho, estando em contato direto com pessoas potencialmente infectadas pelo coronavírus.
Aduz que os profissionais de enfermagem, ao atuarem no acolhimento, detecção e avaliação das situações suspeitas de contágio pelo coronavírus, especialmente por representarem a maior categoria atuante na área da saúde, estão presentes 24h por dia junto ao paciente, integrando, assim, a linha de frente no combate e controle da propagação do COVID-19.
Narra que os referidos profissionais, por razões inerentes à sua atuação, encontram-se mais suscetíveis à contaminação, tornando-se necessário que aqueles com idade maior ou igual a 60 anos, portadores de doenças crônicas, doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, hipertensão ou com imunodeficiência e gestantes, sejam afastados da assistência direta ao paciente suspeito ou confirmado com o COVID-19.
Afirma que a saúde é direito coletivo constitucionalmente garantido a todos os cidadãos, devendo-se haver maior atenção quanto às medidas protetivas para aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade diante do cenário pandêmico ora vivenciado.
Inicial instruída com procuração e documentos.
É o breve relato. DECIDO.
2. FUNDAMENTAÇÃO
a) DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
Dispõe o art. 109, inciso I, da Constituição Federal que compete à Justiça Federal processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho.
O Conselho Federal de Enfermagem- COFEN, assim como os Conselhos Regionais, criados para fiscalizar o exercício da profissão de enfermeiro e das demais profissões compreendidas nos serviços de enfermagem, possuem natureza jurídica de autarquias federais (art. 1º da Lei 5.905/1973), razão pela qual as ações propostas por essas entidades atraem a competência para a Justiça Federal.
b) DA LEGITIMIDADE DO COREN PARA A AÇÃO CIVIL PÚBLICA
No âmbito da tutela coletiva, o STJ já firmou entendimento de que os Conselhos de Fiscalização, entre eles o Conselho de Enfermagem, possuem legitimidade para ajuizar ação civil pública, nos termos do art. 5º, inciso IV, da Lei 7.347/1985, considerando sua natureza autárquica, desde que haja relação entre a finalidade institucional da entidade com o objeto da ação, conforme se observa no caso em exame. Nesse sentido:
LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Esta Corte de Justiça possui entendimento segundo o qual as autarquias de fiscalização detêm legitimidade para a propositura de ação voltada à defesa do interesse coletivo da corporação, bem como para a prestação de serviços de saúde de forma eficiente à coletividade, quando o tema guarde relação com a atividade profissional exercida, sendo esse o caso dos autos. 2. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no REsp 1610027/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 13/12/2019) (REsp 1388792/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/05/2014, DJe 18/06/2014).
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM - COREN. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. 1. Trata-se na origem de Apelação interposta pelo Conselho Regional de Enfermagem e pelo Ministério Público Federal contra sentença nos autos da Ação Civil Pública que foi extinta sem resolução do mérito, sob o fundamento de carência a ação. 2. O art. 5º da da Lei 7.347/85 elencou o rol dos legitimados concorrentes para a defesa daqueles direitos, nos quais se incluem as autarquias, em cuja categoria estão os Conselhos profissionais, uma vez que ostentam natureza autárquica, conforme decidido pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.717/DF. Contudo, devem ter correlação entre a parte que detém legitimidade e o objeto da ação 3. In casu, pretende o Conselho Regional de Enfermagem "vedar a prática de atos privativos de enfermeiro por outros profissionais de enfermagem e especialmente, compelir para a promoção de regular contratação/manutenção de profissional enfermeiro durante todo o período de funcionamento das unidades de saúde do município Recorrido" (fl. 247, e-STJ). 4. Recursos Especiais providos. (REsp 1388792/SE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/05/2014, DJe 18/06/2014)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.PRETENSÃO DE OBRIGAR HOSPITAL A CONTRATAR E MANTER PROFISSIONAL DE ENFERMAGEM. EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES DE POLÍCIA ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. ARTIGO 5º, XXXV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INTERESSE PROCESSUAL. UTILIDADE E NECESSIDADE. CARACTERIZAÇÃO. 1. O fato de os estabelecimentos hospitalares cuja atividade básica seja a prática da medicina não estarem sujeitos a registro perante o Conselho de Enfermagem não constitui impeditivo a que sejam submetidos à fiscalização pelo referido órgão quanto à regularidade da situação dos profissionais de enfermagem que ali atuam. Porém, mesmo reconhecendo o poder de polícia administrativa ao Conselho de Enfermagem, este não afasta a utilidade-adequação da presente ação civil pública. 2. Revestido ou não de prerrogativa executória aos atos administrativos das autarquias de fiscalização, estas e qualquer das partes é dado recorrer à tutela jurisdicional, porque assim dispõe o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que pode ser extraído do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 3. Na espécie, nota-se que as condições da ação estão presentes. O interesse processual, única condição em destaque, é composto pelo binômio utilidade - necessidade do provimento. A utilidade pode ser facilmente demonstrada pela necessidade de ordem judicial para a obrigar o hospital recorrido a contratar e manter durante todo o período de seu funcionamento profissionais de enfermagem. Por outro lado, a caracterização da necessidade pode ser extraída dos princípios da jurisdição, especialmente, a imparcialidade e a definitividade. 4. Na esfera administrativa dos conselhos profissionais a relação processual não possui a característica da imparcialidade bem definida, até porque o Conselho de fiscalização ocupa, também, a função de "julgador". Ademais, as decisões proferidas nesta seara não ostentam caráter definitivo, imutabilidade, presente apenas nos provimentos jurisdicionais. Dessa forma, pode a administração buscar no Poder Judiciário que o Estado-Juiz, dentro da relação processual, promova a solução definitiva da controvérsia, atento às alegações de cada parte. 5. Não se pode falar, portanto, em falta de interesse de agir por parte do Conselho Regional de Enfermagem que intentou a ação civil pública buscando que o hospital recorrido contrate e mantenha, durante todo o período de seu funcionamento, profissionais de enfermagem. Precedente: AgRg no REsp 1342461/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 28/02/2013. 6. Recursos especiais providos. (REsp 1398334/SE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/10/2013, DJe 24/10/2013)
No caso, a legitimidade do COREN se sobressai em razão do objeto da demanda se fundar nas condições de trabalho e na proteção da saúde dos profissionais de enfermagem que se encontram no chamado “grupo de risco” para possíveis complicações decorrentes do COVID-19, havendo, pois, interesse coletivo em discussão (art. 1º, inciso IV, Lei n. 7.347/1985).
c) DA TUTELA DE URGÊNCIA
A tutela provisória de urgência, seja ela de natureza antecipada ou cautelar, é instituto que encontra previsão no artigo 300 e seguintes do diploma processual civil vigente, exigindo, para a sua concessão, a presença dos seguintes requisitos básicos: a) probabilidade do direito (fumus boni iuris); e, b) perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora); cuja verificação deve se dar de forma cumulativa.
Ademais, a tutela provisória de urgência não poderá ser concedida quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão (art. 300, §3º,CPC).
Ainda, dispõe o art. 12 da Lei 7.347/1985 a possibilidade de concessão de liminar, com ou sem justificação prévia.
No caso, a parte autora busca ordem judicial apta a compelir os requeridos a assegurar o afastamento voluntário dos profissionais de enfermagem inseridos no grupo de risco para o COVID-19, atuantes em unidade de saúde sob sua responsabilidade, das atividades que envolvam o contato direto com pacientes diagnosticados ou suspeitos de infecção por coronavírus, ou o remanejamento dos aludidos profissionais para setores hospitalares de menor risco, onde não haja atendimento direto a pacientes suspeitos ou diagnosticados com COVID-19.
Inicialmente, importa consignar que a gestão de unidades públicas de saúde, assim como a aplicação e gestão de políticas públicas voltadas à saúde de maneira geral cabem ao Poder Executivo, no âmbito das respectivas esferas federal, estadual e municipal. No ponto, o dever de promover ações voltadas para proteção da saúde pública é atribuído à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, na medida das atribuições e responsabilidades distribuídas no âmbito do Sistema Único de Saúde (art. 196 e seguintes da Constituição Federal). Especificamente em relação aos municípios, dispõe a Constituição que compete a estes prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população (art. 30, inciso VII, CF/88).
A Lei n. 8.080/1990, ao regulamentar o Sistema Único de Saúde-SUS, dispôs em seu art. 18, inciso I, que compete à direção municipal do SUS planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde.
Assim, como regra, o Poder Judiciário não deve interferir na gestão da Administração Pública e na implementação e gerência de determinada política pública, pois tais questões estão no âmbito da discricionariedade administrativa do gestor público. Trata-se, pois, de decorrência imperativa do preceito constitucional que apregoa a separação dos poderes (art.2º, CF/88).
Contudo, casos ocorrem em que, para assegurar a observância de preceitos constitucionais protetivos de bens jurídicos essenciais, a intervenção do Poder Judiciário no âmbito da gestão administrativa e implementação e gestão das políticas públicas passa a ser imperativa, buscando dar efetividade às normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais mínimos, o chamado “mínimo existencial”, como o direito à saúde. Nesse sentido, cabe trazer esclarecedora lição do Ministro Celso de Mello, ao discorrer sobre o direito à saúde e o dever do Poder Público de prestá-lo, em voto proferido no ARE 745745 AgR / MG:
Mais do que nunca, é preciso enfatizar que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social, qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa.
Isso significa que a intervenção jurisdicional, justificada pela ocorrência de arbitrária recusa governamental em conferir significação real ao direito à saúde, tornar-se-á plenamente legítima (sem qualquer ofensa, portanto, ao postulado da separação de poderes), sempre que se impuser, nesse processo de ponderação de interesses e de valores em conflito, a necessidade de fazer prevalecer a decisão política fundamental que o legislador constituinte adotou em tema de respeito e de proteção ao direito à saúde . (ARE 745745 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 02/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-250 DIVULG 18-12-2014 PUBLIC 19-12-2014)
A Constituição Federal consagra entre os direitos fundamentais sociais o direito à saúde(art. 6º, caput, CF/88). Trata-se de direito público subjetivo, inerente a todos e reivindicável por qualquer pessoa. Nesse diapasão, nosso diploma constitucional estabelece que o direito à saúde é direito de todos e dever do Estado, que deve garanti-lo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação(art. 196, caput, CF/88).
Apesar de consubstanciar norma que consagra direito prestativo a ser promovido gradativamente pelo Estado e que, por isso, deve ser implementado de maneira progressiva pelos entes políticos por meio de formulação de políticas públicas e de acordo com sua organização administrativa e orçamentária, fato é que, como já afirmado, há um núcleo mínimo de direitos fundamentais que devem ser proporcionados pelo Poder Público de imediato. Ainda nas palavras do Ministro Celso de Mello:
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômicofinanceira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese , criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa
– o ilegítimo , arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004).
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente , do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade .
Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à saúde – que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 196) – tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência e/ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.
(ARE 745745 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 02/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-250 DIVULG 18-12-2014 PUBLIC 19-12-2014)
No que toca à situação narrada nos autos, é necessário fazer um breve panorama normativo no Brasil decorrente da crise de saúde que assola o mundo atualmente.
Em 11 de março de 2020, Organização Mundial da Saúde – OMS declarou publicamente situação de pandemia em relação ao novo coronavírus(COVID-19). No Brasil, o Congresso Nacional editou o Decreto Legislativo n. 6/2020, reconhecendo o estado de calamidade pública decorrente da pandemia relacionada ao COVID-19.
Por sua vez, o Ministério da Saúde, através da Portaria n. 188/2020, declarou emergência em saúde pública de importância nacional em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus.
Ainda, foi editada a Lei n. 13.979/2020, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública e de importância internacional decorrente do coronavírus. Referido diploma legal estabeleceu medidas de isolamento e quarentena, entre outras, objetivando a proteção da coletividade, e teve sua regulamentação disposta na Portaria n. 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde.
Não há dúvidas, portanto, que se está diante de situação de grave emergência em saúde pública, a exigir de todos os entes federativos a adoção de medidas sanitárias e de saúde pública para a superação da pandemia.
Quanto à disseminação do novo coronavírus no país, os dados colhidos no Portal do Ministério da Saúde, atualizados em 09/05/2020, apontam 155.939 casos confirmados da doença no Brasil e 10.627 óbitos, alcançando o COVID-19 a taxa de letalidade de 6,8% (https://covid.saude.gov.br).
Especificamente quanto ao Estado de Rondônia, segundo Boletim Diário - Edição 53(8/05/2020) emitido pela SESAU/RO sobre o COVID-19 no Estado, há 1.222 casos confirmados para COVID-19 em Rondônia, que estão divididos da seguinte forma entre os municípios: 932 em Porto Velho; 120 em Ariquemes; 47 em Ji-Paraná; 20 em Urupá; 16 em Jaru; 13 em Ouro Preto do Oeste; 9 em Guajará-Mirim; 8 em Vilhena; 6 em Rolim de Moura; 6 em Cacoal; 5 em Candeias do Jamari; 5 em Primavera de Rondônia; 4 em Alto Alegre dos Parecis; 4 em Governador Jorge Teixeira; 4 em Alvorada do Oeste; 3 em Buritis; 3 em Mirante da Serra; 2 em Alto Paraíso; 2 em Espigão do Oeste; 2 em Nova Brasilândia do Oeste; 2 em Theobroma; 2 em Alta Floresta; 1 em Campo Novo; 1 em Cujubim; 1 em Itapuã do Oeste; 1 em Novo Horizonte do Oeste; 1 em Pimenta Bueno; 1 em Vale do Anari; 1 em São Felipe do Oeste. Ainda, há 39 óbitos por COVID-19 confirmados, nos seguintes municípios: Porto Velho – 29; Guajará-Mirim – 4; Ji-Paraná – 3; Campo Novo – 1; Cujubim – 1; Rolim de Moura – 1 (http://www.rondonia.ro.gov.br/edicao-53-boletim-diario-sobre-coronavirusem-rondonia).
Logo, é indubitável a relevância da atuação dos trabalhadores em saúde, categoria na qual se inserem os profissionais de enfermagem, que têm assumido papel indispensável à implementação das medidas adotadas para o enfrentamento ao coronavírus. Não há como olvidar que referidos profissionais compõem a linha de frente do combate ao COVID-19, de forma que, por razões inerentes à própria atividade por eles desempenhada, acabam por se manter em situação de maior risco e vulnerabilidade à infecção pelo novo coronavírus, em um verdadeiro papel de heroísmo diário.
Por outro lado, é de se considerar que as políticas públicas traçadas para o enfrentamento do COVID-19 dependem do trabalho dos profissionais de saúde, entre eles os de enfermagem. É fato que os profissionais de enfermagem viabilizam o regular desenvolvimento dos trabalhos dos profissionais médicos, trabalhando em conjunto com estes e cuidando diretamente dos pacientes acometidos ou com suspeita de estarem com COVID-19. Assim, a essencialidade dos serviços dos profissionais de enfermagem é inequívoca para uma adequada prestação de serviço de saúde à população, especialmente diante do atual cenário.
Portanto, há que se perquirir o ponto de equilíbrio entre o direito à saúde garantido constitucionalmente a todos os brasileiros e, por óbvio, aos profissionais da saúde; e as políticas públicas adotadas pelos Governos Federal, Estadual e Municipal, buscando o enfrentamento da pandemia, que necessitam da massiva força de trabalho de profissionais da área da saúde.
Com efeito, o Ministério da Saúde, através da Portaria n. 428, de 19 de março de 2020, ao dispor sobre as medidas de proteção para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus (COVID-19) no âmbito das unidades do Ministério da Saúde no Distrito Federal e nos Estados, determinou o trabalho remoto aos servidores e empregados públicos: a) com sessenta anos ou mais; b) imunodeficientes; c) com doenças preexistentes crônicas ou graves, como cardiovasculares, respiratórias e metabólicas; e d) gestantes e lactantes (art. 2º da Portaria n. 428, de 19/03/2020).
No ponto, embora a determinação de trabalho remoto não se aplique aos servidores/empregados que prestem serviços de atenção direta à saúde da população, por expressa dicção dos incisos II e III do parágrafo único do art. 11 da referida Portaria, é certo que tal regramento delineou o chamado “grupo de risco”, assim consideradas aquelas pessoas que, em razão de fatores e características específicas, estão mais suscetíveis às complicações fatais do COVID-19.
Indo além, especificamente no que tange à matéria trazida à baila, o próprio Ministério da Saúde, no bojo do Boletim Epidemiológico Especial n. 08, de 09 de abril de 2020, tratou do afastamento dos profissionais de saúde em grupo de risco(https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/April/09/be-covid-08-final2.pdf). Por sua relevância, colaciono o teor do referido documento:
Afastamento de profissional de saúde em grupo de risco
São consideradas condições de risco:
Idade igual ou superior a 60 anos
Cardiopatias graves ou descompensados (insuficiência cardíaca, cardiopatia isquêmica)
Pneumopatias graves ou descompensados (asma moderada/grave, DPOC)
Imunodepressão
Doenças renais crônicas em estágio avançado (graus 3, 4 e 5)
Diabetes mellitus, conforme juízo clínico
Doenças cromossômicas com estado de fragilidade imunológica
Gestação de alto risco
Nestes casos, recomenda-se o afastamento laboral. Em caso de impossibilidade de afastamento desses profissionais, estes não deverão realizar atividades de assistência a pacientes suspeitos ou confirmados de Síndrome Gripal. Preferencialmente deverão ser mandos em atividades de gestão, suporte, assistência nas áreas onde NÃO são atendidos pacientes suspeitos ou confirmados de Síndrome Gripal.
Evidente, portanto, que a recomendação do Ministério da Saúde de promover a realocação dos profissionais da saúde pertencentes ao grupo de risco, em atividades administrativas (de gestão e suporte), e em áreas hospitalares onde não sejam realizados atendimentos a pacientes suspeitos ou confirmados de Síndrome Gripal, representa a medida mais ponderada diante da crise vivenciada, de modo que sua observância deve ser imperativa em razão de representar em certa medida a concretização de um preceito constitucional de forte relevância, qual seja, o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, previsto no art. 7º, inciso XXII, aplicável aos servidores públicos nos termos do art. 39, §3º, CF/88. Logo, tal diretriz deve ser observada pelos gestores municipais, com vista a garantir aos referidos profissionais os direitos constitucionais à saúde e a ter os riscos decorrentes do trabalho minorados.
Cabe esclarecer que, não obstante a recomendação acima inserir apenas a gestação de alto risco como integrante do grupo de risco, é imperativo que a proteção à maternidade seja promovida desde o início da gestação, de modo que devem ser compreendidas no grupo de risco as gestantes independentemente de a gestação ser de alto risco ou não.
Apesar de parte autora requerer inicialmente a autorização judicial para afastamento voluntário dos profissionais de enfermagem integrantes do grupo de risco, é certo que tal medida pode trazer consequências graves em razão da diminuição drástica da força de trabalho nos Municípios e causar grandes danos à prestação de saúde para a população, especialmente em Municípios do interior do Estado de Rondônia em que o número de servidores públicos nas unidades públicas de saúde tende a ser reduzido por limitações financeiras.
Assim, o deferimento liminar do pedido de afastamento laboral repentino de um contingente de pessoal ainda desconhecido por parte deste Juízo pode resultar em efeito oposto ao pretendido, agravando a situação do sistema de saúde pública local e colocando em risco a saúde de toda uma coletividade que depende da força de trabalho desses valorosos profissionais.
Desta feita, buscando um equilíbrio entre o resguardo da força de trabalho nas unidades públicas de saúde para enfrentamento dessa pandemia e a proteção da saúde de grupos mais vulneráveis às complicações do COVID-19, a medida que mais concretiza o princípio da razoabilidade diante do conflito entre os princípios em jogo é a realocação laboral dos profissionais de enfermagem, de modo que trabalhem afastados da linha de frente do combate à pandemia, em atividades administrativas (de gestão e suporte), ou em áreas hospitalares onde não sejam realizados atendimentos a pacientes suspeitos ou confirmados de COVID-19.
Outrossim, o perigo de dano evidencia-se no fato de que o exercício das atividades próprias da profissão por trabalhadores inseridos no grupo de risco, especialmente no atendimento direto a pacientes suspeitos ou confirmados de COVID-19, pode custar a própria vida dos profissionais de enfermagem.
Cabe aqui trazer informação divulgada pelo Conselho Federal de Enfermagem-COFEN que indica que o número de enfermeiros infectados pelo COVID-19 vem crescendo, assim como o número de óbitos. Os dados demonstram o número de 12 mil casos de contaminação de profissionais de enfermagem pelo COVID-19, com 98 óbitos, em uma taxa de letalidade de 2,5%(http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/). No estado de Rondônia, os dados informados pelo COFEN indicam 139 profissionais de enfermagem infectados, com 2 óbitos registrados.
Logo, evidenciado o risco de dano irreparável caso a medida não seja implementada o quanto antes, considerando o número crescente de casos confirmados de profissionais de enfermagem infectados com COVID-19 e o número de óbitos registrados.
Por fim, cabe consignar que o deferimento da liminar antes da oitiva das partes requeridas se mostra necessário diante da urgência decorrente das medidas que devem ser adotadas.
3. DISPOSITIVO
Ante o exposto, DEFIRO PARCIALMENTE o pedido de tutela provisória de urgência para DETERMINAR aos Municípios requeridos que procedam à realocação dos profissionais de enfermagem atuantes em unidades de saúde sujeitas à gestão municipal e que estejam incluídos no grupo de risco definido pelo Ministério da Saúde – aqui entendidos os de idade igual ou superior a 60 anos; portadores de cardiopatias graves ou descompensados (insuficiência cardíaca, cardiopatia isquêmica), pneumopatias graves ou descompensados (asma moderada/grave, DPOC), imunodepressão, doenças renais crônicas em estágio avançado (graus 3, 4 e 5), diabetes mellitus (conforme juízo clínico), doenças cromossômicas com estado de fragilidade imunológica; e gestantes, devendo referidos profissionais de enfermagem permanecerem em atividades administrativas ou de suporte, ou ainda clínicas, em locais onde não haja atendimento a pacientes suspeitos ou confirmados com coronavírus (COVID-19).
CONSIGNO que a medida deverá ser cumprida no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de multa diária que, desde já, fixo em R$ 1.000,00 (mil reais) e que majoro para R$ 5.000,00(cinco mil reais) após o décimo dia de descumprimento da determinação.
Ressalto que os Municípios requeridos deverão suprir de imediato, ou o mais breve possível, a diminuição da força de trabalho decorrente da realocação acima determinada, para que não haja prejuízo na prestação do serviço de saúde à população.
Considerando o número de partes requeridas e a limitação à realização de atos processuais
presenciais, postergo a designação da audiência de conciliação para momento posterior.
INTIME-SE o requerente para que tenha ciência desta decisão.
INTIMEM-SE os requeridos, pelo meio mais célere, para que cumpram a presente decisão e CITEM-SE para, querendo, apresentarem resposta à demanda, no prazo legal.
DÊ-SE vista ao Ministério Público Federal – MPF.
COMUNIQUE-SE imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ, nos termos do art. 4º, III e IV, da Portaria CNJ n. 57, de 20 de março de 2020, nos autos do Pedido de Providências – PP no 0002314- 45.2020.2.00.0000.
Decisão registrada por ocasião da assinatura eletrônica.
Publique-se. Intimem-se. Citem-se.
Ji-Paraná/RO, 11 de maio de 2020.
SAMUEL PARENTE ALBUQUERQUE
Juiz Federal Substituto
Obs: Assinado eletronicamente por: SAMUEL PARENTE ALBUQUERQUE - 11/05/2020 11:27:54 http://pje1g.trf1.jus.br:80/pje/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam?x=20051111275395700000227511933 Número do documento: 20051111275395700000227511933