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19/01/2023 -

Decisão de HC da 1ª Vara da Subseção de Rio Verde

Decisão de HC da 1ª Vara da Subseção de Rio Verde

19/01/23 13:07

Trata-se de habeas corpus preventiva com objetivo de evitar persecução penal por parte do Superintendente Regional da Polícia Federal, do Delegado Geral da Polícia Civil e do Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de Goiás.

Relata ser o paciente portador de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), ansiedade (CID F41.1), insônia (CID G47), bruxismo (CID K07.6) e enxaqueca (CID G43), que impactam sua vida pessoal e profissional.

Relata iniciou terapia com óleo de canabidiol, após acompanhamento médico e psicológico, o que resultou em significativa melhora nos sintomas acima descritos.

Esclarece que obteve autorização junto à ANVISA, válida por dois anos, para a importação do medicamento à base de canabis, todavia seu alto custo (aproximadamente R$ 1.455,21) causa impacto negativo no orçamento familiar.

Informa, ainda, que frequentou e concluiu o Curso de Cultivo e Extração de Cannabis Medicinal pela Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC), possuindo, portanto, capacidade técnica para o cultivo e a produção do óleo de canabidiol.

Requer, em síntese que: seja determinado às autoridades encarregadas da Polícia Civil, Polícia Federal e Polícia Militar que se abstenham de promover sua prisão em flagrante pela importação de 30 (trinta) sementes de Cannabis Sativa, suficientes para o cultivo de 15 (quinze) mudas, a cada 3 (três) meses; e que ao final lhe seja concedido salvo-conduto definitivo que autorize a importação de 30 (trinta) sementes de Cannabis Sativa, bem como o cultivo de até 15 (quinze) mudas, a cada 3 (três) meses, para uso exclusivo próprio e enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica a ser atualizada anualmente.

O Ministério Público Federal manifestou-se favoravelmente à concessão de salvo-conduto ao paciente.

Relatado o essencial. Decido.

A utilização do habeas corpus é adequada ao caso porque se busca evitar que o paciente venha a ser preso em razão de conduta que, em tese, se amoldaria a crimes previstos na Lei 11.343/2006.

De início, cumpre esclarecer que a questão debatida neste habeas corpus deve ser decidida com base em critérios jurídicos e científicos, despida de qualquer viés religioso ou moral. Não se trata aqui de adotar doses de progressismo ou conservadorismo, mas de buscar a solução jurídica possível e justa sob a ótica científica e do acesso à saúde, direito fundamental com assento constitucional nos artigos 6º e 196 da CF.

Esclarecido esse ponto, não obstante a ausência de autorização legislativa para o plantio de maconha para fins medicinais, pouco a pouco a ANVISA está a permitir o acesso a medicamentos provenientes da canabis. Nesse aspecto, A ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC 130/2016), o que motivou a incluir medicamentos à base de canabidiol e THC com até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria 344/1998. Como consequência, a prescrição médica passou a ser autorizável pela Notificação de Receita A e Termo de Consentimento Informado do paciente. Em 22/04/2022 a ANVISA também autorizou a comercialização de fitofármacos com até 0,2% de THC. Cabe destacar que os avanços no âmbito administrativo vão além da esfera da ANVISA, tanto que o Conselho Federal de Medicina, pela Resolução 2.113/2014, regulamentou o uso de canabidiol no tratamento da epilepsia.

Portanto, a ciência não dá margem a dúvidas a respeito da pertinência do uso do canabidiol para fins medicinais. Passo ao debate jurídico da questão.

Para melhor compreensão da discussão, vale esclarecer que o ponto central se refere a eventual contradição entre a norma penal incriminadora prevista nos arts. 33 a 39 da Lei 11.343/2006, e a omissão do estado em regulamentar o plantio, a cultura e a colheita de vegetais e substratos dos quais possa ser extraída maconha e o canabidiol, possibilidade prevista no art. 2º, parágrafo único, da mesma lei. Ressalte-se que o art. 2º da Lei de Drogas prevê a possibilidade de se autorizar, no âmbito administrativo da União, o plantio, a cultura e a colheita de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas substâncias para fins medicinais ou científicos.

Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.

Parágrafo único. Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas”.

Há debates no Congresso Nacional, via projetos de lei. Alguns destes projetos modificam a Lei 11.343/2006, descriminalizando o plantio de maconha para fins medicinais, como é o caso do PL 399/2015, que modifica o art. 2º, § 2º, da Lei de Drogas. Outros, como o PL 4776/2019, dispõe, diretamente, sobre o uso da planta para fins medicinais, com fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e sob supervisão do Sistema Único de Saúde. Contudo, por razões que não cabem ser analisadas nesta decisão, a omissão legislativa permanece, o que reforça a necessidade de acesso ao Poder Judiciário.

Ao analisar o caso pela lente do bem jurídico tutelado, resta evidente que o paciente que busca a utilização de droga para tratamento de saúde não afeta em concreto as normas incriminadoras da Lei 11.343. Isso porque aquele que age de modo a cuidar de sua própria saúde, por imperativo lógico, não é capaz de infringir mal à saúde pública da coletividade, bem jurídico protegido na Lei de Drogas.

Ademais, se a própria Lei 11.343/2006 aventa a possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, evidencia-se a incompatibilidade dessa conduta com os delitos previstos nos arts. 33 e seguintes dessa lei. Em poucas palavras, não se pode tutelar e ofender a saúde a um só tempo e mediante a realização da mesma conduta.

Nessa perspectiva, cumpre enfatizar que a omissão legislativa em regulamentar o art. 2º da Lei de Drogas não criminaliza automaticamente a conduta de plantar canabis para fins medicinais por faltar efetiva lesão ao bem jurídico tutelado. Evidente, ainda, que não se faz presente finalidade de lucro nessa conduta, elemento ínsito ao tipo do art. 33 da Lei 11.343/2006 (REsp n. 1.920.404/PA, Ministro Olindo Menezes (Desembargador convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, DJe 11/10/2021).

Fato é que a omissão legislativa se porta como barreira ao adequado, efetivo e universal acesso à saúde, pois torna a importação de medicamentos a única via possível, solução esta burocrática e de elevado custo.

No âmbito do Poder Judiciário, o tema está em análise do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.708/DF, de relatoria da Ministra Rosa Weber. Todavia, a questão está praticamente consolidada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, após a 5ª Turma superar o entendimento antes firmado no RHC 123.402-RS (Info 690), no julgamento do RHC 779289 – DF, cuja ementa trago a seguir:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS PREVENTIVO. 1. UTILIZAÇÃO DO MANDAMUS COMO SUBSTITUTO RECURSAL. NÃO CABIMENTO. AFERIÇÃO DE EVENTUAL FLAGRANTE ILEGALIDADE. 2. PEDIDO DE EXPEDIÇÃO DE SALVOCONDUTO. PLANTIO DE MACONHA PARA FINS MEDICINAIS. NECESSIDADE DE EXAME NA SEARA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE DE OBTENÇÃO DO MEDICAMENTO NA SEARA CÍVEL. AUTO-CONTENÇÃO JUDICIAL NA SEARA PENAL. 3. SUPERAÇÃO DE ENTENDIMENTO. AUSÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO ADMINISTRATIVA. CONTROVÉRSIA A RESPEITO DO ÓRGÃO COMPETENTE. ESFERA CÍVEL. SOLUÇÃO MAIS ONEROSA E BUROCRÁTICA. NECESSIDADE DE SE PRIVILEGIAR O ACESSO À SAÚDE. 4. DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE (ART. 196 DA CF). REPRESSÃO AO TRÁFICO (ART. 5º, XLIII, DA CF). NECESSIDADE DE COMPATIBILIZAÇÃO. LEI 11.343/2006 QUE PROÍBE APENAS O USO IDEVIDO E NÃO AUTORIZADO. ART. 2º, P. ÚNICO, DA LEI DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE A UNIÃO AUTORIZAR O PLANTIO. TIPOS PENAIS QUE TRAZEM ELEMENTOS NORMATIVOS. 5. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. DIREITO À SAÚDE. BENEFÍCIOS DA TERAPIA CANÁBICA. USO MEDICINAL AUTORIZADO PELA ANVISA. 6. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO BEM JURÍDICO TUTELADO. SAÚDE PÚBLICA NÃO PREJUDICADA PELO USO MEDICINAL DA MACONHA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL E CONGLOBANTE. IMPOSSIBILIDADE DE SE CRIMINALIZAR QUEM BUSCA ACESSO AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. 7. IMPORTAÇÃO DE SEMENTES. AUSÊNCIA DO PRINCÍPIO ATIVO. ATIPICIDADE NA LEI DE DROGAS. POSSIBILIDADE DE TIPIFICAR O CRIME DE CONTRABANDO. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. SALVO-CONDUTO QUE DEVE ABARCAR TAMBÉM REFERIDA CONDUTA. 8. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. PARECER MINISTERIAL PELA CONCESSÃO DO WRIT. PRECEDENTES.

1. Diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, o Superior Tribunal de Justiça passou a acompanhar a orientação do Supremo Tribunal Federal, no sentido de ser inadmissível o emprego do writ como sucedâneo de recurso ou revisão criminal, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade.

2. No julgamento do Recurso em Habeas Corpus n. 123.402/RS, concluí que a autorização para plantio de maconha com fins medicinais depende de critérios técnicos cujo estudo refoge à competência do juízo criminal, que não pode se imiscuir em temas cuja análise incumbe aos órgãos de vigilância sanitária. - De igual sorte, considerando que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária autoriza a importação de fármacos à base de cannabis sativa, considerei que o direito à saúde estaria preservado, principalmente em razão da existência de precedentes desta Corte Superior, favoráveis ao custeio de medicamentos à base de canabidiol pelo plano de saúde (REsp n. 1.923.107/SP), bem como do Supremo Tribunal Federal (RE 1.165.959/SP), que, em repercussão geral, fixou a tese de que "cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada”. - Dessa forma, vinha determinando que o pedido fosse analisado administrativamente, com possibilidade de, em caso de demora ou de negativa, apresentar o tema ao Poder Judiciário, porém à jurisdição cível competente, privilegiando a auto-contenção judicial na seara penal.

3. Contudo, ao me deparar novamente com a matéria na presente oportunidade, passados quase dois anos do julgamento do recurso acima indicado, verifico que o cenário não se alterou administrativamente. De fato, a ausência de regulamentação administrativa persiste e não tem previsão para solução breve, uma vez que a Anvisa considera que a competência para regular o cultivo de plantas sujeitas a controle especial seria do Ministério da Saúde e este considera que a competência seria da Anvisa. - Ademais, apesar de a matéria também poder ser resolvida na seara cível, conforme anteriormente mencionado, observo que a solução se revela mais onerosa e burocrática, com riscos, inclusive, à continuidade do tratamento. Dessa forma, é inevitável evoluir na análise do tema na seara penal, com o objetivo de superar eventuais óbices indicados por mim, anteriormente, privilegiando-se, dessa forma, o acesso à saúde, por todos os meios possíveis, ainda que pela concessão de salvoconduto.

4. A matéria trazida no presente mandamus diz respeito ao direito fundamental à saúde, constante do art. 196 da Carta Magna, que, na hipótese, toca o direito penal, uma vez que o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, determina a repressão ao tráfico e ao consumo de substâncias entorpecentes e psicotrópicas, determinando que essas condutas sejam tipificadas como crime inafiançável e insuscetível de graça e de anistia. - Diante da determinação constitucional, foi editada mais recentemente a Lei 11.343/2006. Pela simples leitura da epígrafe da referida lei, constata-se que, a contrario sensu, ela não proíbe o uso devido e a produção autorizada. Dessa forma, consta do art. 2º, parágrafo único, que "pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas". - Nesse contexto, os dispositivos de Lei de Drogas que tipificam os crimes, trazem um elemento normativo do tipo redigido nos seguintes termos: "sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Portanto, havendo autorização ou determinação legal ou regulamentar, não há se falar em crime, porquanto não estaria preenchido o elemento normativo do tipo. No entanto, conforme destacado, até o presente momento, não há qualquer regulamentação da matéria, o que tem ensejado inúmeros pedidos perante Poder Judiciário.

5. Como é de conhecimento, um dos pilares da dignidade da pessoa humana é a prevalência dos direitos fundamentais, dentre os quais se inclui o direito à saúde, garantido, de acordo com a Constituição Federal, mediante ações que visam à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. - Contudo, diante da omissão estatal em regulamentar o plantio para uso medicinal da maconha, não é coerente que o mesmo Estado, que preza pela saúde da população e já reconhece os benefícios medicinais da cannabis sativa, condicione o uso da terapia canábica àqueles que possuem dinheiro para aquisição do medicamento, em regra importado, ou à burocracia de se buscar judicialmente seu custeio pela União. - Desde 2015 a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem autorizando o uso medicinal de produtos à base de Cannabis sativa, havendo, atualmente, autorização sanitária para o uso de 18 fármacos. De fato, a ANVISA classificou a maconha como planta medicinal (RDC 130/2016) e incluiu medicamentos à base de canabidiol e THC que contenham até 30mg/ml de cada uma dessas substâncias na lista A3 da Portaria n. 344/1998, de modo que a prescrição passou a ser autorizada por meio de Notificação de Receita A e de Termo de Consentimento Informado do Paciente.

6. Trazendo o exame da matéria mais especificamente para o direito penal, tem-se que o bem jurídico tutelado pela Lei de Drogas é a saúde pública, a qual não é prejudicada pelo uso medicinal da cannabis sativa. Dessa forma, ainda que eventualmente presente a tipicidade formal, não se revelaria presente a tipicidade material ou mesmo a tipicidade conglobante, haja vista ser do interesse do Estado, conforme anteriormente destacado, o cuidado com a saúde da população. - Dessa forma, apesar da ausência de regulamentação pela via administrativa, o que tornaria a conduta atípica formalmente – por ausência de elemento normativo do tipo –, tem-se que a conduta de plantar para fins medicinais não preenche a tipicidade material, motivo pelo qual se faz mister a expedição de salvo-conduto, desde que comprovada a necessidade médica do tratamento, evitando-se, assim, criminalizar pessoas que estão em busca do seu direito fundamental à saúde.

7. Quanto à importação das sementes para o plantio, tem-se que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça sedimentaram o entendimento de que a conduta não tipifica os crimes da Lei de Drogas, porque tais sementes não contêm o princípio ativo inerente à cannabis sativa. Ficou assentado, outrossim, que a conduta não se ajustaria igualmente ao tipo penal de contrabando, em razão do princípio da insignificância. - Entretanto, considerado o potencial para tipificar o crime de contrabando, importante deixar consignado que, cuidando-se de importação de sementes para plantio com objetivo de uso medicinal, o salvo-conduto deve abarcar referida conduta, para que não haja restrição, por via transversa do direito à saúde. - Aliás, essa particular forma de parametrar a interpretação das normas jurídicas (internas ou internacionais) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos, bem como tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I, II e III do art.3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo da respectiva Carta Magna caracteriza como "fraterna" (HC n. 94163, Relator Min. CARLOS BRITTO, Primeira Turma do STF, julgado em 2/12/2008, DJe-200 DIVULG 22/10/2009 PUBLIC 23/10/2009 EMENT VOL-02379-04 PP-00851). - Doutrina: BRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007; MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A Fraternidade como Categoria Jurídica: fundamentos e alcance (expressão do constitucionalismo fraternal). Curitiba:Appris, 2017; MACHADO, Clara. O Princípio Jurídico da Fraternidade - um instrumento para proteção de direitos fundamentais transindividuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017; VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de; Direito, Justiça e Fraternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

8. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício, para expedir salvo-conduto em benefício do paciente, para que as autoridades responsáveis pelo combate ao tráfico de drogas, inclusive da forma transnacional, abstenham-se de promover qualquer medida de restrição de liberdade, bem como de apreensão e/ou destruição dos materiais destinados ao tratamento da saúde do paciente, dentro dos limites da prescrição médica, incluindo a possibilidade de transporte das plantas, partes ou preparados dela, em embalagens lacradas, ao Laboratório de Toxicologia da Universidade de Brasília, ou a qualquer outra instituição dedicada à pesquisa, para análise do material. Parecer ministerial pela concessão da ordem. Precedentes.

A 6ª Turma do STJ também adota esse entendimento, a exemplo do RHC 147169-SP, julgado em 14/06/2022, por unanimidade, em que foi concedido salvo conduto para impedir instauração de persecução penal para o cultivo de cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio. Pela importância do tema, impõe-se transcrever a ementa:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. PENAL E PROCESSUAL PENAL. SALVO-CONDUTO. CULTIVO ARTESANAL DE CANNABIS SATIVA PARA FINS MEDICINAIS. PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA, FRAGMENTARIEDADE E SUBSIDIARIEDADE. AUSÊNCIA DE OFENSA AO BEM JURÍDICO TUTELADO. OMISSÃO REGULAMENTAR. DIREITO À SAÚDE.

1. O Direito Penal é conformado pelo princípio da intervenção mínima e seus consectários, a fragmentariedade e a subsidiariedade. Passando pelo legislador e chegando ao aplicador, o Direito Penal, por ser o ramo do direito de mais gravosa sanção pelo descumprimento de suas normas, deve ser ultima ratio. Somente em caso de ineficiência de outros ramos do direito em tutelar os bens jurídicos é que o legislador deve lançar mão do aparato penal. Não é qualquer lesão a um determinado bem jurídico que deve ser objeto de criminalização, mas apenas as lesões relevantes, gravosas, de impacto para a sociedade.

2. A previsão legal acerca da possibilidade de regulamentação do plantio para fins medicinais, art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006, permite concluir tratamento legal díspar acerca do tema: enquanto o uso recreativo estabelece relação de tipicidade com a norma penal incriminadora, o uso medicinal, científico ou mesmo ritualístico-religioso não desafia persecução penal dentro dos limites regulamentares.

3. A omissão legislativa em não regulamentar o plantio para fins medicinais não representa "mera opção do Poder Legislativo" (ou órgão estatal competente) em não regulamentar a matéria, que passa ao largo de consequências jurídicas. O Estado possui o dever de observar as prescrições constitucionais e legais, sendo exigível atuações concretas na sociedade.

4. O cultivo de planta psicotrópica para extração de princípio ativo é conduta típica apenas se desconsiderada a motivação e a finalidade. A norma penal incriminadora mira o uso recreativo, a destinação para terceiros e o lucro, visto que, nesse caso, coloca-se em risco a saúde pública. A relação de tipicidade não vai encontrar guarida na conduta de cultivar planta psicotrópica para extração de canabidiol para uso próprio, visto que a finalidade, aqui, é a realização do direito à saúde, conforme prescrito pela medicina.

5. Vislumbro flagrante ilegalidade na instauração de persecução penal de quem, possuindo prescrição médica devidamente circunstanciada, autorização de importação da ANVISA e expertise para produção, comprovada por certificado de curso ministrado por associação, cultiva cannabis sativa para extração de canabidiol para uso próprio.

6. Recurso em habeas corpus provido para conceder salvo-conduto a Guilherme Martins Panayotou, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, como polícias civil, militar e federal, Ministério Público estadual ou Ministério Público Federal, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, totalizando 60 por ano, para uso exclusivo próprio, enquanto durar o tratamento, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, que integra a presente ordem, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 11.343/2006.

Superadas as questões estritamente jurídicas, passo à análise do caso concreto.

Importa esclarecer que não se trata aqui de conceder qualquer sorte de licença de cultivo de cannabis sativa ao paciente, vez que essa discussão sequer cabe via habeas corpus. Trata-se apenas de reconhecer ilegalidade na instauração de persecução penal em face de quem possui prescrição médica circunstanciada, autorização de importação da ANVISA, e expertise para produção e extração de óleo da cannabis sativa para uso próprio.

O paciente instruiu seu pedido com pareceres médico e psicológico; prescrição médica indicando o uso de óleo à base de canabidiol; pesquisa orçamentária comprobatória do alto custo do medicamento importado; autorização da ANVISA para importação excepcional do produto derivado da canabis; e certificado de conclusão do curso de cultivo e extração de canabis medicinal.

A necessidade de uso de medicamento a base de canabis resta comprovada da documentação médica juntada aos autos que demonstra que o paciente foi diagnosticado com transtorno de déficit de atenção com imperatividade (TDAH), ansiedade (CID F41.1), insônia (CID G47), bruxismo (CID k07.6) e enxaqueca (CID G43). Com base nesse quadro, foi prescrito medicamento à base de cannabis sativa.

Observo que o paciente está autorizado pela ANVISA a importar o óleo à base de canabidiol, assim como possui o conhecimento técnico necessário para cultivo e extração do óleo de canabidiol, conforme se observa do Curso de Cultivo e Extração de Cannabis Medicinal pela Sociedade Brasileira de Estudos de Cannabis Sativa (SBEC).

Esse o quadro, em que se afiguram demonstrados a necessidade de tratamento médico adequado e efetivo, a expertise na produção do óleo de canabidiol, o alto custo de importação, e a omissão legislativa em regulamentar o art. 2º da Lei 11.343/2006, impõe-se a concessão do pedido.

Ante o exposto, concedo o salvo-conduto ao paciente, para impedir que qualquer órgão de persecução penal, incluindo-se Polícia Federal, Civil e Militar, Ministério Público Federal e Estadual, turbe ou embarace o cultivo de 15 mudas de cannabis sativa a cada 3 meses, no total de 60 por ano, para uso exclusivo próprio, nos termos de autorização médica, a ser atualizada anualmente, até a regulamentação do art. 2º, parágrafo único, da Lei 11343/2006.

Rio Verde, 18 de janeiro de 2023.


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