Tribunais não são altares nem a Constituição é uma lei eclesiástica
Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.
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O fato de o Supremo ser a última corte na hierarquia judicial implica que recai ao tribunal o direito de errar por último. Foi o que ocorreu na última segunda-feira (25), quando o STF decidiu permitir símbolos religiosos em prédios públicos da União, como crucifixos e imagens de santos. Posicionando-se entre a espada da opinião pública no país de maioria cristã e o texto constitucional que estipula a separação entre Estado e igreja, o Supremo escolheu jogar fora o Estado laico como quem joga pérolas aos porcos, para ficarmos nas metáforas bíblicas.
A decisão faz mais sentido como uma encíclica papal. Os próprios termos do debate estão errados: onde no caso está escrito "símbolos religiosos", leiam-se símbolos católicos, porque em hipótese alguma se cogita que no Brasil, com índices endêmicos de racismo religioso contra religiões de matriz africana, haja representações de orixás em prédios públicos. Ao priorizar o catolicismo, o STF permite que a lei crie distinções e preferências entre pessoas —aqui, por crença religiosa—, o que é expressamente proibido na Constituição brasileira (Artigo 19, III).
Retirar a cruz do plenário do STF não é aversão à tradição cristã. A cruz no plenário do Supremo ofende todas as partes perante a corte que não partilham dessa crença, como também ofende quem, como boa parte dos evangélicos, não coaduna com a imagem de Cristo e de santos. Separar igreja e Estado é a forma que a Constituição encontrou para que o Estado respeite todas as religiões, inclusive a ausência dela; não esqueçamos que a laicidade surgiu após guerras religiosas como forma de permitir convivência mútua, não animosidade.
A qual tradição cultural brasileira tão nobre os crucifixos e os santos em prédios públicos se referem, ministros Cristiano Zanin e Flávio Dino? A promoção do cativeiro de povos indígenas em "guerras justas" na colonização espanhola e portuguesa nas Américas? A manutenção pela Igreja Católica no Brasil dos ditos escravos da religião? A perseguição católica antigênero e antissexualidade?
A cruz no STF deveria ofender todos como uma sacrilégio à liberdade religiosa; mantê-la sobre a cabeça dos magistrados é uma blasfêmia, porque tribunais não são altares nem a Constituição é uma lei eclesiástica.
Fonte: Folha de São Paulo 28/11/2024
Iris Helena
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