Fugir do senso comum virou prática arriscada, atividade subversiva passível de cancelamento
Mariliz Pereira Jorge
Colunas
Cena do filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles - Alile Dara Onawale/Divulgação
Talvez eu seja a única que ainda não tenha assistido a "Ainda Estou Aqui". Mas já gosto do filme, por sua relevância num momento em que voltamos a falar (de novo) em golpe e ditadura. Como a maioria, na bolha em que vivo, torço para que nosso representante faça cada vez mais bonito no circuito e que Fernanda Torres traga um Oscar para casa.
Também acho natural que esse sentimento não seja unanimidade. Qualquer produção artística toca de forma singular a audiência. Para mim, "A Substância", para usar um exemplo atual, é uma obra-prima, enquanto causou apenas repulsa em outros que estiveram nos cinemas. Portanto, parece razoável que alguém tenha considerado o filme de Walter Salles apenas mediano ou que tenha avaliado como nulas as chances na premiação mais badalada do mundo.
É o que costumávamos chamar de opinião, cada vez mais em desuso nessas mesmas bolhas que frequento. Pareceu exagero quando dois amigos, profissionais da área de audiovisual, disseram que não falariam publicamente, nem sob tortura, que o filme não merece Oscar, apesar da atuação de Fernanda e da importância do assunto. O temor fez sentido ao ler que o cantor Johnny Hooker foi atropelado pela marcha do cancelamento ao declarar sua torcida por Demi Moore e ser mais cético em torno do êxito de "Ainda Estou Aqui".
Parece tudo bobagem, disse me disse, mas é mais um grave sinal de como a censura tem sido exercida por quem diz defender a democracia. Não vale como argumento afirmar que as pessoas são livres para opinar e arcar com as consequências quando isso soa como ameaça de retaliação. Quem se identifica com o campo progressista já deve ter se percebido calando ou calibrando opiniões para que estas não destoem do discurso estabelecido pela militância. Ou se valendo disso para agradar convertidos.
Não faz dez anos que a ministra Cármen Lúcia, num discurso antológico sobre liberdade de expressão no STF, decretou "cala a boca já morreu". Cedo demais diante do desafio que se apresenta. Fugir do senso comum virou prática arriscada, atividade subversiva passível de cancelamento, o exílio social do mundo contemporâneo.
Fonte: Folha de São Paulo 27/11/2024
Iris Helena
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