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Publicações de Interesse Público

09/12/2024 -

Ineficiência do Judiciário ou da legislação?

Ineficiência do Judiciário ou da legislação?

Regulamentar adequadamente a Lei do Superendividamento e atualizar a política de crédito melhoraria a qualidade das dívidas para os banqueiros e para os consumidores

 Por Carolina Munhoz Rossi
e Roberto Troster 

Colunas

 Ineficiência do Judiciário ou da legislação? — Foto: Freepik

 Nos balanços das instituições financeiras há operações de crédito que são incobráveis. Taxas de crédito superiores a 500% ano em algumas operações para pessoa física, ao que se deve acrescentar o IOF. Incham os balanços e o Judiciário, mas com resultados agregados negativos para o sistema financeiro, para os devedores, para o Judiciário e para o país. 

Alguns poucos tomadores conseguem liquidar esses créditos no curtíssimo prazo. A grande maioria não consegue e tenta crédito em outras instituições, criando bolas de neve. Considerando as altas taxas de rolagem dessas dívidas, num primeiro momento inflam os balanços. Para cobrá-las recorrem ao Judiciário. Como são dívidas em mais de uma instituição, são vários processos por devedor.

 Como os empréstimos são em valores muito além da capacidade financeira dos tomadores, é óbvio que as dívidas e os processos vão crescer indefinidamente. São milhões de processos. É óbvio: a intermediação financeira só funciona se tomadores pagam seus empréstimos, assim como, também é óbvio, que empréstimos mal concedidos criam uma dinâmica perversa que deve ser superada celeremente.

 Uma solução para essa dinâmica foi a lei 14.181/2021, conhecida como a Lei do Superendividamento, pensada para tirar consumidores da armadilha da dívida. É um redemoinho de dívida crescendo e renda disponível caindo, por conta de empréstimos contraídos para se livrar de dívidas antigas, com juros cada vez mais altos.

 Um ônus adicional da armadilha da dívida para os consumidores é ter o CPF negativado, o que dificulta ainda mais o crédito e aumenta os juros aplicáveis. Atualmente, são 72.641.926 cidadãos com nome “sujo”. Um em cada três brasileiros tem dificuldades para todo tipo de operação comercial e financeira e até sofre restrições para alguns empregos. Ficam sem cidadania econômica plena. 

A lei alterou o Código do Consumidor e criou a recuperação judicial para pessoa física. Dessa forma, consegue juntar todas as suas dívidas, com credores diversos, e processos, em uma renegociação coletiva única, com um plano factível de pagamento, de acordo com seus ganhos, organizar sua vida financeira e ter garantida uma renda mínima para despesas básicas. 

A armadilha pode ocorrer por fatores imprevistos, como um acidente, doença, desemprego, o comportamento de alguns maus credores e até desconhecimento e irresponsabilidade dos tomadores. Todavia, a dinâmica do setor financeiro agrava o problema e, em boa parte das situações de inadimplência, é a responsável por ela. São banqueiros prejudicando banqueiros.

 O motivo é que um comportamento que faz sentido para cada instituição individual prejudica o conjunto. Ao primeiro sinal de deterioração na solvência de um tomador, deve-se cobrar o que é possível, reduzir seus limites de crédito, elevar as taxas e aumentar as garantias. A prescrição é clara: complicações têm que ser antecipadas e rapidamente enfrentadas.

 Cada instituição individual tenta ser mais rápida que as outras, extrair o máximo possível e minimizar suas perdas, agravando ainda mais a saúde financeira do tomador. Como todos os credores atuam simultaneamente, a qualidade da dívida só piora. À medida que a dívida é inflada por todos e a capacidade de gerar renda do tomador é diminuída, ela fica impagável e se eterniza.

 Todos perdem. A cobrança de dívidas impagáveis é onerosa. São estruturas internas e empresas de cobrança, advogados externos e custas do Judiciário que têm que ser remunerados. As negociações são credor a credor. O custo é às vezes maior do que o valor recuperado e a inadimplência é elevada. No último semestre, as perdas de crédito foram superiores ao do lucro do Sistema Financeiro Nacional, R$ 116,7 bilhões e R$ 113,9 bilhões respectivamente.

 A negociação em bloco e a maior autonomia para o Judiciário determinar uma saída rapidamente deveriam tornar a recuperação de dívidas mais certa e mais simples. Ganham os bancos com soluções mais rápidas e mais baratas, ganham os devedores saindo da armadilha da dívida e ganha o Brasil com crédito mais responsável. Todos deveriam querer a aplicação efetiva da lei. 

Mas para isso credores precisariam deixar de buscar a cobrança individual no processo e entendê-lo como o processo de arrecadação coletivo que ele é. Tivesse o devedor condições de negociar e pagar individualmente cada credor, não estaria superendividado. O bolo é pequeno para tantas grossas fatias. É necessário enxergar as dívidas como um todo. E isso não é o que se tem visto nos processos. Alguns têm centenas de páginas e aumentam desnecessariamente o trabalho do Judiciário, diminuindo sua eficiência. 

As propostas de acordo trazidas pelos credores são poucas e impossíveis de serem quitadas pelo devedor considerando sua renda e o total de seus débitos. Ele conseguiria pagar um, mas não todos os credores, e não se pode esquecer que muitos lhe deram crédito sabedores das dívidas anteriores. 

A lei acaba sendo maravilhosa. Mas apenas no papel. Tem que ser regulamentada adequadamente. Fixar um mínimo existencial razoável. Foi fixado em R$ 600 pelo Decreto Presidencial 11.567/2023, um valor abaixo da linha da pobreza. Foi uma maneira de fazer com que a lei “não pegue”. 

Há ainda outro senão. É a não inclusão de dívidas fiscais nas renegociações. O governo em vez de ajudar na volta à cidadania econômica dos presos na armadilha se torna um peso a mais. São princípios constitucionais a função social da propriedade e a defesa do consumidor. Arrecadar até o último centavo, corrigir as dívidas pela Selic e ter prioridade na arrecadação não são. 

O governo, em vez de ser parte da solução, é parte importante do problema, na Lei do Superendividamento e na omissão em atualizar a política de crédito. Mudar é importante e só depende do Poder Executivo. Melhoraria a qualidade das dívidas para banqueiros e para consumidores. Ganham os bancos, ganham os consumidores e ganha o Brasil.

 Carolina Nabarro Munhoz Rossi é juíza de direito.
Roberto Luis Troster é economista. 

Fonte: Valor Econômico 09/12/2024

Iris Helena
Biblioteca


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