PEC que fala da inviolabilidade da vida desde a concepção em tese não altera legislação de aborto, mas pode estimular persecuções
Hélio Schwartsman
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São Paulo
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Bonecos que imitam fetos foram exibidos durante a sessão na Câmara para defender a aprovação da proposta - Lula Marques/Agência Brasil
Uma das várias lendas em torno da destruição da biblioteca de Alexandria reza que o general Amr ibn al-As, após conquistar a cidade egípcia em 640 d.C., consultou o califa Omar sobre como deveria proceder em relação à coleção.
A resposta não se fez tardar: "Quanto aos livros que mencionaste [...], se seu conteúdo está de acordo com o livro de Alá, podemos dispensá-los [...]. Se, pelo contrário, contêm algo que não está de acordo com o livro de Alá, não há nenhuma necessidade de conservá-los. Prossegue e os destrói".
Algo parecido vale para a mal batizada PEC da Vida. Se é verdade que sua eventual aprovação não muda as normas relativas ao aborto legal, então ela é dispensável. Se, pelo contrário, ela afeta as já poucas possibilidades legais de interrupção da gravidez, então é a redução do direito ao aborto que os legisladores deveriam estar discutindo, de forma transparente. Pelo Datafolha, 58% dos brasileiros se opõem a mais restrições.
Em termos estritamente normativos, penso que acrescentar ao artigo 5º da Constituição uma frase afirmando que os direitos do nascituro são invioláveis desde a concepção não afeta as regras do aborto. O artigo 5º diz que a vida é inviolável e isso não inviabiliza excludentes de ilicitude como a legítima defesa.
Na verdade, algo muito próximo ao texto da PEC já foi incorporado ao arcabouço legal brasileiro quando o país internalizou o Pacto de San José, em 1992. Há uma polêmica sobre se esse tipo de tratado tem estatuto constitucional ou apenas supralegal. De toda forma, ele não limitou a legislação de aborto.
Se é assim, por que os religiosos insistem em manobras como a da PEC da Vida? Eles apostam na confusão. No plano psicológico, a mudança no texto pode incentivar policiais, procuradores e juízes a processar e julgar casos de aborto com mais severidade. Mas, nesse caso, os religiosos não estariam agindo de boa-fé, já que estariam recorrendo a um artifício para driblar a norma.
Qualquer que seja o caso, tudo recomenda que a PEC seja fulminada. Ou ela é inútil ou desonesta.
Fonte: Folha de São Paulo 03/12/2024
Iris Helena
Biblioteca