Por
Angélica Resende
e
Outros
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Foto: Gabriel de Paiva/Agência O Globo
Com 58% de sua área ocupada por florestas, o Brasil se comprometeu, no âmbito do Acordo de Paris, a zerar o desmatamento no país até 2050. Ainda que isso seja viável, temos um caminho árduo a percorrer em pouco mais de 25 anos - principalmente pelo fato de que, como mostram os dados do MapBiomas, 72% das derrubadas têm indícios de ilegalidade.
Somente o Estado de São Paulo teve 132.684 hectares de vegetação nativa suprimidos entre 2009 e 2020. O levantamento, realizado no estudo “Território, paisagem e fragmento”, da Universidade Federal de São Carlos, revelou que, desse total, 6.534 hectares foram desmatados de maneira autorizada, enquanto 55.346 foram alvo de autos de infração ambiental. Isso significa que 53% do desflorestamento em São Paulo no período se deu de maneira irregular e não autuada.
Cerca de 80% do território paulista faz parte do bioma Mata Atlântica, desde 2006 protegido pela Lei Federal 11.428, a Lei da Mata Atlântica, que estabelece critérios rigorosos para a supressão de mata nativa. O que garante o seu cumprimento, no entanto, é a fiscalização constante. Mas, como vimos, mesmo em São Paulo, o Estado mais rico da federação, onde há uma das melhores estruturas de licenciamento ambiental, derrubadas irregulares vêm acontecendo - e, neste caso, qualquer quantidade é inaceitável.
Por outro lado, também precisamos olhar com atenção para o desmatamento tido como legal. Ao longo de 11 anos, o desflorestamento de uma área correspondente a mais de 6 mil campos de futebol foi autorizado no Estado de São Paulo.
Embora crucial e voltada ao uso sustentável do bioma, a Lei da Mata Atlântica abrange critérios subjetivos que demandam regulamentação por resoluções criadas pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente. Isso torna hoje sua aplicação vulnerável a interpretações inconsistentes, permitindo que áreas de alto valor de conservação sejam legalmente desmatadas.
Um dos critérios é o uso da vegetação nativa com base nos estágios sucessionais, que são as fases de recuperação ou desenvolvimento natural de uma área de vegetação. A legislação atual permite a remoção de vegetação nativa em estágios avançados ou intermediários de sucessão (vegetação primária ou secundária nos estágios avançado ou médio) apenas para situações de utilidade pública (como transporte, saneamento e infraestrutura energética) ou interesse social. Nesses casos, a lei federal exige compensação ambiental - ou seja, que uma área equivalente de vegetação nativa seja preservada ou restaurada.
Um dos problemas é o desmatamento da vegetação nativa em estágio inicial de sucessão, a primeira fase de recuperação após uma perturbação, dominada por espécies pioneiras de rápido crescimento. A lei federal permite essa supressão para qualquer propósito e sem a necessidade de compensação ambiental, o que, ao facilitar a remoção legal de fragmentos jovens, prejudica os esforços para aumentar a cobertura florestal. Além disso, critérios subjetivos ou pouco claros para classificar os estágios de regeneração podem levar a erros, permitindo a supressão inadequada de florestas maduras, o que afeta a provisão de serviços ecossistêmicos (como a regulação climática e do ciclo da água) e a perda de uma rara e ameaçada biodiversidade.
Ao não considerar adequadamente os diferentes tipos de vegetação e tampouco atribuir faixas de valores de referência às suas características específicas, como altura das árvores, densidade de troncos, área basal (área ocupada pela projeção dos troncos das árvores em uma área definida) e biomassa, a legislação atual pode permitir a classificação equivocada de florestas em estágios sucessionais inferiores ao real estágio em que se encontram.
Além disso, a falta de critérios para alocação de parcelas, área de amostragem e diâmetro mínimo das árvores a serem avaliadas, assim como a dificuldade em identificar espécies ameaçadas, pode levar à distorção de informações importantes nos relatórios técnicos.
Também devemos olhar para a flexibilização da supressão de vegetação em estágio médio e avançado nas áreas urbanas, outro aspecto da Lei da Mata Atlântica que, ao afetar a qualidade ambiental de territórios já fragilizados, precisa ser debatido.
Para enfrentar esses desafios, como ressaltamos em artigo na revista científica “Perspectives in Ecology and Conservation”, é essencial adotar uma nova estrutura de avaliação, mais transparente e cientificamente robusta. Também apontamos ser preciso revisar e reforçar os parâmetros de classificação, fornecendo diretrizes claras sobre área de amostragem e diâmetros mínimos de árvores. Além de levantar pontos essenciais para melhoria, propusemos um modelo de aplicação da lei que poderá incluir duas etapas: primeiro, uma avaliação estrutural baseada em parâmetros claros e históricos de cobertura florestal; segundo, uma análise da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos, além do seu valor na paisagem (por exemplo, se ampliam ou interligam fragmentos importantes).
A inclusão de tecnologias de sensoriamento remoto também pode melhorar significativamente a precisão e a eficiência do monitoramento florestal, permitindo avaliações mais detalhadas e menos suscetíveis a erros humanos. É fundamental ainda que as agências ambientais estaduais tenham o conhecimento técnico-científico, os instrumentos e as ferramentas necessárias para avaliar a situação dos maciços florestais e validar adequadamente os estudos apresentados nos processos de licenciamento ambiental.
A adoção dessa estrutura é urgente para garantir a proteção efetiva da Mata Atlântica. O bioma não pode ser tratado apenas como uma fonte de recursos a serem explorados; afinal, ele é fundamental para assegurar a vida e a economia no Brasil. É hora de reavaliar nossas abordagens para adotar e consolidar práticas que realmente protejam o bioma onde vivem 65% dos brasileiros e que concentra a produção de 76% do PIB nacional. A Mata Atlântica pode, em muitos aspectos, servir de modelo para a conservação de outros biomas ameaçados no país e no mundo.
Angélica Resende, engenheira florestal, é doutora em Botânica pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP).
Felipe Rosafa Gavioli, engenheiro agrônomo, é doutor em planejamento e uso de recursos renováveis (UFSCar).
Luís Fernando Guedes Pinto, engenheiro agrônomo, é diretor executivo da Fundação SOS Mata Atlântica.
Paulo Guilherme Molin é professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão em Geotecnologias (CePE-Geo)
Fonte: Valor Econômico 16/08/2024
por Iris Helena Gonçalves de Oliveira
Biblioteca
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