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03/09/2001 15:53 -

Corrupção do STF na visão luhmanniana

Corrupção do STF na visão luhmanniana

GLÁUCIO FERREIRA MACIEL GONÇALVES

Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela UFMG, Professor da Faculdade Milton Campos e Juiz Federal da 1ª Vara

Da mesma forma que os brasileiros foram surpreendidos com norma baixada pelo governo federal prevendo o racionamento obrigatório de energia em todo o País, os juristas ficaram atônitos com as notícias que chegavam da capital federal a respeito do julgamento da constitucionalidade da referida norma feito pelo Supremo Tribunal Federal. Não pelo fato de ter-se declarado constitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, o artigo da Medida Provisória 2.152-2/01, instituidora do plano de racionamento, que prevê a obrigatoriedade da economia de energia e a possibilidade de corte no seu fornecimento, mas sim porque alguns eminentes juízes usaram argumentos não-jurídicos, pertencentes ao campo da política, para justificar seus votos, conforme noticiado pelo site do próprio tribunal. Estaria certo o Supremo Tribunal ao proceder desta forma, por ser também uma corte política, cujos membros são nomeados por livre indicação do presidente da República, e que é encarregada de guardar a carta política da Nação? Não, definitivamente não, porque agiria de forma corrupta.

O Supremo Tribunal Federal foi criado sob as luzes, escassas hoje em dia, da proclamação da República. Implantada a Federação, seria necessário pensar no regime dual de justiça, a exemplo da já grande federação existente há um século, os Estados Unidos da América. Foi assim que se criaram os dois grandes ramos do Poder Judiciário brasileiro, a justiça federal e a justiça estadual. Se antes da República não se podia conceber a existência de uma justiça federal, em razão da dependência do poder Judicial, como era chamado o poder composto pelos juízes de Direito, jurados, tribunais de Apelação e o Supremo Tribunal de Justiça, em relação ao poder central Moderador, sua criação pelo Decreto 848, de 1890, era considerada como imprescindível para a consolidação da soberania nacional.

O Supremo Tribunal Federal, nos seus mais de cem anos de história, não registrou nem um caso de corrupção, entendida esta como o desvio de conduta praticado pelo servidor público ou agente político que solicita vantagem indevida ou aceita promessa de tal vantagem, para si ou para outrem, em razão da função que exerce. A retidão dos seus membros é portanto indiscutível. A corrupção de que aqui se trata diz respeito à concepção de Niklas Luhmann, sociólogo alemão que muito contribuiu para o estudo da ciência do direito e faleceu em plena atividade, de que o sistema jurídico é em si fechado, não admitindo interferências de outros sistemas sociais, como o da política ou o da religião, na interpretação de suas normas.

O sistema social para Luhmann não é o todo, que se compõe de partes que se relacionam entre si. O sistema social é distinto daquilo que se encontra à sua volta, o ambiente, e é operacionalmente fechado. Ele é capaz de produzir sozinho suas estruturas e seus elementos, decorrendo daí a concepção de sistema autopoiético. Diante disso, o sistema da política trabalha com o código da política e o sistema jurídico, tão-só com o código do direito/não-direito. Se se utiliza outro código, por exemplo, o pertencente ao sistema da religião ou ao sistema da política, dá-se a corrupção, porque na sua concepção é impossível essa mescla de conceitos de sistema distintos.

A decisão do Supremo Tribunal Federal na ação declaratória de constitucionalidade nº 9, que declarou constitucional o plano de racionamento de energia imposto pelo governo, é então manifestamente corrupta, porque feriu o código do direito, já que usou o código da política. Certa ou não a decisão, porque não adianta mais discutir o assunto, em razão da interpretação extensiva que se deu ao efeito vinculante próprio das decisões definitivas de mérito nas ações declaratórias para abarcar inclusive as cautelares, o fato é que ela trouxe insegurança jurídica. Se essa segurança seria conseguida, caso os argumentos fossem exclusivamente jurídicos, a exemplo de certos julgamentos norte-americanos nos quais é dispensável a fundamentação, não se sabe, porque a eternização da solução do conflito é imanente à família jurídica romano-germânica. De qualquer forma, seria mais fácil entender e justificar o sistema se o código do direito não sofresse invasões. A corrupção quebra até mesmo a previsão de estabelecer expectativas de comportamento que podem permanecer no futuro, função do direito na visão luhmanniana, e vem aliada à prática de abuso de autoridade, ao deixar que o direito seja regulado pela política.

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