Sentença (veja a íntegra) do juiz federal da Subseção de Altamira, Herculano Martins Nacif, declara a nulidade das certidões de 44 propriedades rurais situadas na região do Xingu, por considerar “a notoriedade de grilagem originada por fraude que remonta a Carlos Medeiros”, considerado um (fantasma), já que nunca apareceu, mas figura em centenas de ações de grilagem como possuidor, inclusive, de vários documentos pessoais diferentes um do outro. As fazendas somam 547.609 hectares.
O magistrado tomou a decisão ao apreciar uma ação de reconvenção ajuizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) contra a empresa GNG Importação Exportação Ltda. Na reconvenção, o réu – no caso Funai e Incra – é que passa a processar o autor (a GNG) na mesma ação.
A GNG ingressou primeiramente em juízo com uma ação de indenização contra a Funai e o Incra. Alegava que os 44 imóveis rurais foram adquiridos por Carlos Medeiros, que, por sua vez, teria adquirido as propriedades por meio de carta de sentença e adjudicação de legitimação de posse, extraída da ação declaratória que fazia parte do inventário dos bens deixados por falecimento de Manoel Fernandes de Sousa e Manoel Joaquim Pereira.
O Incra incorporou ao patrimônio público 316.287 ha da área de propriedade da GNG, supostamente sem o devido processo legal. Considerando-se apenas o valor da terra nua, da madeira de lei e de outras espécies, a GNG Importação Exportação Ltda. estimou como valor justo de indenização, a ser paga pelas propriedades relacionadas, a importância de US$ 5,202 bilhões, valor que poderia até aumentar no momento da efetivação da liquidação.
Mas o Incra entrou com uma ação de reconvenção, alegando em juízo que, como as terras em questão são provenientes de grilagem que remonta a Carlos Medeiros, a Justiça Federal deveria decretar a nulidade dos registros imobiliários apresentados nos autos pela GNG.
Herculano Nacif considerou que a GNG não tem razão em alegar que que o Incra incorporou ao patrimônio público 316.287 ha sem o devido processo legal. A empresa não tem razão, segundo o magistrado, porque “não comprovou o destaque dos imóveis em tela no patrimônio público. Somente tal prova poderia, em princípio, tornar nulo o procedimento discriminatório atacado.”
A “propriedade” da autora, segundo Nacif, “não possui alicerce em justo título, sendo que a transferência realizada não teve por base ato jurídico hábil, sendo a União, no mínimo desde 1983, legítima proprietária dos imóveis objeto do processo.” Ele acrescentou que a desapropriação somente pode ocorrer quando o bem desapropriado não pertence ao ente expropriante, o que afasta as pretensões da empresa GNG. “Como foi certificado pelos cartórios de imóveis que as terras em questão não possuíam donos, públicos ou particulares, restou comprovado que os imóveis concerniam a terras devolutas”, afirma a sentença.
Herculano Nacif manifestou-se convicto da legalidade do procedimento administrativo discriminatório de que resultou o registro de terras devolutas denominada Gleba Engenho, dentro da qual estão as fazendas Simão, Malacabado, São Francisco da Terra Alta, Panema, Cotovello, Samaúma do Bamburral, Santa Cruz, Poço Raso, Cujary, Futuro, Santo Antônio, Janahy-Quara, Menino Deus, Boa Esperança, Nova Vista, Soledade de Nazareth, Porto do Campo, São Sebastião, Porta Alegre, Campina, Piratuba, Ubinzal, Arumanduba, Tachy, Conceição, São Raymundo, Fazenda Novo Porto, Fazenda Petagica, Pereira, Assacu, Rio Preto, Porto Esperança I, Porto Esperança II e Porto Esperança III.
Ressalta ainda o magistrado que a escritura pública conferida a Carlos Medeiros pelo Cartório do Único Ofício de Acará já foi declarada nula pelo Tribunal de Justiça do Estado, “haja vista ter-se originado de meros títulos de posse e registros paroquiais de terras do Estado do Pará e, em tendo sido, a área de terras objeto desta ação, desmembrada daquela porção maior discriminada na escritura do sr. Carlos Medeiros, a reconvinda (GNG) não é proprietária dos imóveis rurais em questão.”
Lembra a sentença que documentos constantes dos autos configuram provas documentais suficientes, “posto que revestidos de fé pública”, de que a União possui razão quando afirma que os imóveis não são de propriedade da GNG. Tais documentos, além disso, atestam que a União é a proprietária da Gleba Engenho.
A indefinição da propriedade das áreas afetas ao caso “Carlos Medeiros”, segundo Nacif, impede que a União promova a utilização das terras para a reforma agrária, a utilização racional e auto-sustentável de incontáveis imóveis rurais e, principalmente, “impede a concretização de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, como a dignidade da vida humana para muitos brasileiros que (sobre)vivem na região amazônica.”
O magistrado classifica a grilagem de terras públicas de “câncer social” e observa que o Poder Judiciário não pode se furtar a combater. “A demonstrar a dimensão da questão a ser enfrentada, está o fato de que, em 2001, existiam 42 ações de cancelamento de registros, abrangendo uma área total de 21,762 milhões de hectares, lembra o juiz. “Os grileiros da Amazônia se beneficiaram com a atuação irresponsável e sem controle de cartórios de comarcas do interior do Pará, onde se perpetrou sistemático descumprimento da Lei de Registros Públicos e das legislações pertinentes ao registros de imóveis. Existem muitos contratos de arrendamentos ou de posse registrados como títulos. O caso vertente é só mais um. Não o primeiro, nem o último, mas deve ser tratado como o início de uma nova fase: o fim da grilagem na região amazônica”, afirma o magistrado.