A Subseção da Justiça Federal em Itaituba, na região oeste do Pará, marcou para o início de dezembro a realização de inspeção judicial e audiência pública, para facilitar o julgamento de ação ajuizada em 2015, pelo Ministério Público Federal (MPF), pedindo o tombamento do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico de Fordlândia, distrito de 4 mil habitantes que faz parte do município de Aveiro. Há mais de 30 anos, um processo administrativo de tombamento do local tramita no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A inspeção judicial, marcada para o dia 6 de dezembro, consistirá na visita do juiz que aprecia a ação, Domingos Moutinho Jr., ao distrito de Fordlândia, para verificar in loco e avaliar determinadas situações que o auxiliem a proferir decisões no processo. Para participar da audiência pública, programada para 7 de dezembro, serão convocados representantes do MPF e de vários órgãos, além de lideranças comunitárias de Fordlândia.
Edificada nos anos 20 do século passado, Fordlândia entraria para a história como símbolo da “aventura” empreendida pelo magnata norte-americano Henry Ford (1863-1947), que pretendia fazer do local o centro que deveria suprir de borracha, exclusivamente, a nascente indústria automobilística nos Estados Unidos, então liderada pela Ford Motors.
Em pouco tempo, Fordlândia transformou-se na terceira cidade mais importante da Amazônia, com hospital, escolas, água encanada, moradia, cinema, luz elétrica, porto, oficinas mecânicas, depósitos, restaurantes, campo de futebol, igreja e hidrantes nas ruas. Mas a experiência fracassou quando os seringais começaram a ser atacados por pragas e acabaram desativados. Fordlândia passou, então, para o domínio da União em 1945, depois que o projeto de Henry Ford já havia sido transferido para Belterra, localidade que então pertencia a Santarém, mas que virou município em 1995.
Audiência - A inspeção judicial e a audiência pública foram anunciadas pelo juiz Domingos Moutinho durante audiência de justificação ocorrida de modo virtual, nesta segunda-feira (25), com a presença do procurador da República Paulo de Tarso Oliveira e de representantes do Iphan, Universidade Federal do Pará (UFPA) e do estado do Pará. Participaram ainda representantes do município de Aveiro e uma pesquisadora que tenta resgatar parte do acervo histórico de Fordlândia.
Ao final da audiência, após ouvir várias exposições sobre as resistências que o Iphan tem encontrado por parte da Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que não tem atendido às solicitações para levantar a dominialidade da área territorial do distrito e dos imóveis que remontam à época em que Fordlândia foi edificada, o juiz mandou citar a União para integrar o processo e adotar “medidas em relação à preservação do patrimônio histórico artístico e cultural” do distrito.
Moutinho determinou ainda que o Iphan disponibilize acesso externo, para qualquer cidadão, ao processo de tombamento histórico de Fordlândia no SEI, um sistema informatizado. Mandou ainda que o Instituto, no momento de realização da inspeção e da audiência, apresente o resultado do levantamento fotográfico que deverá ser realizado nos dias que antecederão aos atos.
Abandono - Na abertura da audiência, Domingos Moutinho disse que em 2016, fascinado pela história da experiência de Henry Ford na Amazônia, visitou Belterra e posteriormente Fordlândia, onde constatou o abandono em que se encontra um acervo por ele classificado de “extraordinário”. Independentemente do julgamento que cada um é livre para fazer sobre o projeto de exploração da borracha na região, “a história não pode ser apagada”, reforçou o juiz.
“A história da Amazônia, a história do Pará é a história da omissão do estado. Essa história se repete em Itaituba, que é uma parte muito ilustrativa dessa omissão, com problemas de exploração de garimpo sem controle e do desmatamento. Tudo é um retrato da omissão do estado”, acrescentou Moutinho. Ele lamentou que se dissemine a ideia de que Fordlândia é uma “cidade-fantasma” e considerou que “isso reflete, em menor escala, a noção de que a Amazônia é um vazio demográfico. Sob essa premissa, ficamos à míngua de políticas públicas, Somos objetos dessas políticas, e não sujeitos”, disse o juiz.
Críticas à SPU - A superintendente do Iphan no Pará, Rebeca Ribeiro, reclamou da recusa da SPU em atender aos chamados do Instituto para solucionar pendências referentes à dominialidade da área, sem o que não será possível concluir o processo de tombamento. “Eles não nos atendem, não nos respondem e não comparecem a reuniões. Sugiro que a SPU seja colocada no processo. É muito difícil o diálogo com eles. É muito complicado”, informou a superintendente.
Rebeca Ribeiro acrescentou que, no Pará, o Iphan se depara com dificuldades estruturais para realizar seu trabalho, contando com apenas quatro arquitetos com atuação num estado que tem mais de 2 mil imóveis tombados. Tal fato, reconheceu a superintendente, não justifica a demora de mais de 30 anos na tramitação do processo de tombamento de Fordlândia, mas demonstra a realidade com que se defronta o Iphan para realizar seu trabalho.
“Nossos arquitetos, hoje, são completamente atarefados de processos diariamente. A Secretaria de Cultura tem muito mais arquitetos e condições de trabalho do que nós temos, mas nós carregamos essa carga de heróis da defesa do patrimônio. Não é necessário só tombar o acervo histórico de Fordlândia. Precisamos de muito mais que isso. O tombamento não garante que aquele imóvel estará protegido. Para proteger, é necessária uma ação muito maior do que o tombamento”, alertou Rebeca Ribeiro.
“Socorro” -O advogado Jairo Araújo e os secretários Fábio Pimenta (Cultura e Turismo) e João Gerdal Paiva Jr. (Administração), que representaram Aveiro na audiência, expuseram claramente a impossibilidade de o município assumir, sozinho, os ônus, sobretudo financeiros, de preservar o patrimônio histórico de Fordlândia.
“Realmente, não temos condições de conservar o patrimônio de Fordlândia, sem o apoio financeiro, sem ações de planejamento e conservação da União. O município de Aveiro tem interesse de preservar, juntamente com a comunidade. Mas pedimos socorro. Precisamos do apoio dos órgãos estaduais e federais para podermos manter aquela história viva e garantir algum retorno para as 4 mil pessoas da comunidade”, resumiu Araújo.
A mestra em Arquitetura Zâmara Lima, que se dedica a pesquisar a história de Fordlândia, alertou que, quanto mais demorar a conclusão do processo de tombamento em curso no Iphan, mais aumentará o risco de descaracterização e deterioração de parte do acervo histórico do lugar. Exemplificou que na denominada Vila Americana, onde se concentravam as residências dos americanos que administravam o projeto, a área de interesse para tombamento resume-se atualmente aos galpões e a quatro ou cinco casas, uma vez que as demais já foram completamente alteradas, seja pela troca de cobertura, seja pela substituição da madeira por alvenaria.