Segundo informações do Ministério da Justiça e Segurança Pública, mais de 200 casos de subtração internacional de crianças estão em andamento no Brasil, causando sofrimento e conflito em famílias espalhadas por todo o mundo. Tema desafiador, trata-se de uma prática ilegal em que a criança é transferida para um país diferente de sua residência habitual, sem o consentimento de um dos genitores, responsáveis legais ou autorização judicial.
Na última sexta-feira, dia 18 de agosto, as desembargadoras federais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), Maria do Carmo Cardoso e Daniele Maranhão, tiveram participação especial no evento “A subtração internacional de crianças sob o olhar restaurativo” promovido pelo Centro Judiciário de Conciliação da Justiça Federal do Distrito Federal (Cejuc/SJDF), em ambiente virtual, com transmissão ao vivo pelo YouTube para toda a população interessada no tema. A ação marcou o primeiro ano de funcionamento do Núcleo de Práticas Restaurativas na Seção Judiciária do DF, e o tema escolhido para refletir e também comemorar as possibilidades da Justiça Restaurativa foi justamente a delicada situação dos menores subtraídos.
Convidada para compor a mesa de abertura do evento, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, que é a coordenadora do Sistema de Conciliação da 1ª Região (SistCon), ressaltou essa formação e comemoração do primeiro ano do Núcleo na SJDF como sendo, de fato, um momento de júbilo, pois representa a chegada no Brasil de um foco diferenciado no que se refere à subtração internacional de crianças. “Passamos a trazer para dentro do centro de conciliação a possibilidade de uma Justiça Restaurativa em que nós trazemos os pais, a criança, e tentamos, ali, resolver as questões que demandam anos e anos a fio de litigância”, avaliou a magistrada.
Segundo a desembargadora federal, hoje o Brasil responde, no Tribunal Internacional de Direitos Humanos, por atrasos e demora na resolução de questões referentes à subtração internacional de crianças, o que enfatiza a importância de se poder, por meio da Justiça Restaurativa, ter um novo olhar sob a resolução dessas questões. “A Justiça Restaurativa se estabelece [...] também para que possamos aí trazer um resultado útil, rápido, para essa solução: para que as crianças não fiquem dentro de uma esfera de litigância entre os pais, [porque] essa criança fica muito prejudicada”, salientou.
Ao concluir, a coordenadora do SistCon destacou, por fim, a existência de exemplos de sucesso na 1ª Região, que tem uma importância ímpar na questão, especialmente por ser uma região que congrega hoje 13 unidades da federação e um número de casos de subtração bastante expressivo. “Lutamos pra amenizar dores e sofrimentos e temos conseguido”, frisou em conclusão.
Coordenadora do Cejuc/SJDF, a juíza federal Rosimayre Gonçalves de Carvalho reforçou o sentimento de alegria em celebrar um ano de funcionamento do Núcleo de Práticas Restaurativas, vivido entre desafios, mas muita motivação em razão de tudo que foi possível perceber nesse ano de enfrentamento de questões e soluções da forma proposta pela Justiça Restaurativa.
Reaprender a julgar - Para a juíza federal Rosimayre Carvalho, os procedimentos relacionados à Justiça Restaurativa demonstram que o essencial é saber ver em todos os detalhes as possibilidades de resolução dos conflitos, o que, muitas vezes, exige a busca de novos conhecimentos e aprendizagens, justamente pela percepção de que os velhos conceitos associados a uma justiça “adversarial” precisam ser colocados em xeque.
Em uma paráfrase da construção poética de Rubem Alves na crônica “Sem Contabilidade”, a magistrada do Núcleo de Práticas Restaurativas do DF afirmou que é preciso “raspar as tintas de um modo centenário” de fazer Justiça, e se esquecer de como aprendemos a agir para criar um novo horizonte de possibilidades.
“A cor nova que percebemos nessa caminhada [de um ano] não é o resultado de uma tinta nova sobre uma parede velha. A Justiça Restaurativa nos propõe um retorno ao original, ao diálogo, à retomada da memória de como podemos fazer e solucionar nossos conflitos por meio de palavras, de gestos, de ação. Por isso a proposta é realmente desaprender, para aprender e poder voltar à pureza de um bom diálogo”, enfatizou.
Segundo Rosimayre, a Justiça Restaurativa também traz a necessidade de sair da justiça solitária de um gabinete para uma justiça construída a várias mãos. “Após um ano de funcionamento, eu sou testemunha de uma mudança substancial não só do meu olhar sobre o que é Justiça, sobre o funcionamento possível e viável de um Sistema de Justiça, como de toda a equipe que participa nesse processo”, concluiu.
A magistrada teceu agradecimento especial à equipe que a apoia e também às desembargadoras Maria do Carmo, coordenadora do SistCon, e à desembargadora Daniele Maranhão, que aceitou o convite para falar sobre as possibilidades de tratar a Justiça Restaurativa no contexto de subtração internacional.
A convenção de Haia e a subtração internacional de crianças - Juíza de enlace no Brasil para a convenção da Haia, a desembargadora federal Daniele Maranhão tratou sobre a importância do papel da participação do País nesse acordo internacional, e sobre as necessárias compreensões para bem aplicar a convenção de Haia aos casos de subtração internacional.
Contextualizando o desenvolvimento da Justiça Restaurativa no Brasil, a magistrada destacou que, quando tudo se iniciou no Brasil, se usava muito o termo Justiça Multiportas. “Hoje temos uma série de novos termos de dizer a mesma coisa no processo evolutivo, que é como conseguir resolver conflitos e sair em paz. Porque a ideia que nós tínhamos é a de que a Justiça estava aqui e sempre para litigar, e que tudo só poderia ser resolvido se alguém brigasse com alguma pessoa e no meio disso haveria um juiz”, elucidou.
A partir de práticas que divergem dessa visão, hoje se observa as pessoas saírem muito mais felizes depois de resolver um litígio de forma pacificada.
A desembargadora federal Daniele ressaltou que, com a convenção da Haia, o Brasil assumiu o compromisso de solucionar os então chamados “sequestros” de maneira prioritária, buscando o interesse do menor. “A Convenção da Haia sempre passou pela Justiça Federal. Ela é, pela Constituição, competente e responsável para tratar dessas questões”, explicou. A magistrada apresentou algumas das principais razões pelas quais a demora em casos desse tipo é extremamente prejudicial, como o rompimento de laços e vínculos da criança com o genitor da qual é afastada, causada pelo excesso temporal.
Sobre o papel do juiz de ligação - que desempenha como representante do TRF1 - destacou que é importante que as pessoas saibam que existe algo a mais na justiça para viabilizar essas questões que são extremamente dolorosas.
Entre os pontos de relevância desse papel estão aquelas intimamente ligadas à mediação, e à facilitação da comunicação entre os colegas juízes internamente e os colegas estrangeiros que fazem parte de uma rede ligada ao tema. Essa rede internacional de juízes de enlace auxilia nas principais dificuldades referentes à devolução, que toca em pontos sensíveis das diferentes legislações em países quanto à subtração. Principalmente, no que tange aos impactos das decisões legais em cada local.
Uma das medidas para evitar problemas é, por exemplo, a decisão espelho, em que em ambos os países as aplicações legais de uma decisão serão respeitadas.
Além de tratar dos objetivos da Convenção da Haia e do papel do juiz de ligação com profundidade, ela explicou do que se trata a subtração internacional de crianças, a superação do termo sequestro para subtração e salientou a necessidade de se compreender o plano jurisdicional por trás desses casos, mencionando ainda a Ação Direta de Constitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal justamente para tratar das questões conflituosas relativas à convenção da Haia. Uma delas diz respeito, principalmente, à interpretação de retorno imediato da criança sem considerar profundamente questões que envolvem esse retorno imediato, violando o interesse do menor.
“Esse é o principal conflito: em que momento nós podemos ou não adotar as exceções da convenção no sentido de entender que a criança deslocada já se adaptou ao novo local de residência [por exemplo], e até que ponto a conciliação pode ser útil para que essa resolução se dê de forma célere ou ela pode ser nociva, quando ela tenta atrasar o processo e não consegue dar vazão as necessidades básicas da devolução ou da retenção do menor no país deslocado”, apresentou a questão.
Entre os pontos de destaque em sua palestra, ela ressaltou a necessidade de os magistrados competentes empreenderem esforços para que os genitores participem das audiências de conciliação, avaliem a conveniência ou não da participação do menor (questão que depende às vezes do grau de maturidade da criança e periculosidade do caso), e também da necessidade de formação dos magistrados federais, já que os juízes federais não são formados para questões específicas de família. “Questões de família, como de menores, tem um grau de sensibilidade incrível. Daí nossa dificuldade e a necessidade de termos formação”, pontuou.
As facilidades proporcionadas pelos meios eletrônicos para realização dessas audiências também foram salientadas pela magistrada, como um facilitador. “A conciliação converge para que tudo [...] se resolva de uma forma mais amigável. Ninguém quer que a criança sofra”, sublinhou.
A aplicação de um olhar restaurador também prevê medidas preventivas contra alegação de violência ou abuso que possam ser verídicas ou inverídicas. Ela também falou sobre a necessidade de atentar para construção de cláusulas em casos de acordo que considerem situações especiais de guarda compartilhada ou regime de convivência, quando for o caso.
A juíza federal também abordou sobre o valor de se considerar que as decisões importantes que digam respeito a menores sejam adotadas em conjunto, e quando isso não é possível entre os genitores, o judiciário age como uma espécie de cogestor. “É nosso dever sem dúvida alguma incentivar a mediação e a conciliação”, afirmou. “A criança é o centro e o cuidado especial da convenção”.
Sobre o evento - As primeiras atividades do workshop sobre a subtração internacional de crianças sob o olhar restaurativo podem ser conferidas na íntegra no canal do TRF1 no YouTube.
A ação tratou ainda de palestras sobre os temas “A justiça restaurativa como alternativa ao enfrentamento da violência no Brasil contemporâneo”, “Violência doméstica contra a mulher no contexto da subtração internacional de crianças, “O papel e a experiência da AGU na subtração internacional de crianças” e “A subtração internacional de crianças: a lente do Judiciário”.
O evento, realizado pelo Cejuc/SJDF, contou com o apoio do SistCon1 e também da Rede de Inteligência da 1ª Região.
AL
Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região