Para resolver os conflitos sociais e da titulação de propriedades de terra que envolvem as comunidades remanescentes, notadamente a dos quilombolas, especialistas, procuradores e procuradoras da República e magistrados e magistradas.
Participaram na última quinta e sexta-feira, dias 26 e 27 de agosto, do workshop virtual “Povos Tradicionais e sua Relação com a Terra”. O evento foi organizado pelo Centro Judiciário de Conciliação da Seção Judiciária do Distrito Federal (Cejuc/SJDF) em parceria com o Sistema de Conciliação da Justiça Federal da 1ª Região (Sistcon).
Os palestrantes concluíram que é preciso resolver os problemas fundiários que envolvem essas comunidades por meio do diálogo e da conciliação entre as partes, para preservar os direitos dos quilombolas e garantir o seu direito à terra tradicionalmente ocupada, como prevê a Constituição Federal (CF).
No segundo e último dia do evento, 27 de agosto, a abertura foi feita pela juíza federal e coordenadora do Cejuc/SJDF, Rosimayre Gonçalves de Carvalho, que ressaltou a função social do workshop e que foi um referencial na cultura de aproximação entre o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e esse tema da terra e da questão fundiária, que tem uma história de problemas desde 1850.
“Desde então, o Brasil vem debatendo a constituição de uma cultura jurídica acerca do tema. A cada passo que se dá na evolução dessas discussões no mundo acadêmico, a gente percebe que ainda há muito que se construir e se preservar dessa relação e daqueles que nos precederam e sabem lidar com a terra de uma forma muito especial”, considerou.
A coordenadora lembrou uma frase que ela acredita que diz muito da alma do evento: “todos nós que trabalhamos com o Direito, principalmente que trabalhamos com o poder de decisão, não podemos decidir de costas para sociedade e o mundo, tomar decisões que vão afetar a vida de milhares de pessoas”.
Em seguida, a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso, que durante cinco anos foi coordenadora do Sistema de Conciliação da 1ª Região, destacou que na época um dos projetos mais importantes que ela acompanhou foi o do anel rodoviário de Belo Horizonte. “Nós começamos a analisar junto ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) possibilidades de indenização de áreas da comunidade quilombola pelas quais deverá passar o anel rodoviário. Foi aí que tive contato com a excepcional e maravilhosa comunidade quilombola, a tradição, a cultura", disse.
A desembargadora federal contou, ainda, que quando foi corregedora do TRF1 viajou para todas as seções judiciárias vinculadas ao Tribunal e conheceu de perto a realidade dos quilombos do Brasil. “Nosso Tribunal é o maior do país até porque atuamos na jurisdição direta em 82% do território nacional", contou.
Para Maria do Carmo Cardoso, os imbróglios judiciais nessa área têm que ser resolvidos por meio da conciliação para diminuir o sofrimento dessas comunidades, com a parceria dos órgãos públicos envolvidos. “Não é que o juiz e o Judiciário sejam lentos. Temos uma legislação que permite muitos recursos judiciais, por isso, às vezes, demora anos para terminar uma demanda. Não somos nós juízes os responsáveis”, observou.
Palestras - A primeira palestra do dia foi do professor doutor Alfredo de Almeida, que abordou o tema “Quilombos - Sematologia face a nova etnicidade”. Ele informou que a corte portuguesa não tinha um Código Negro (Code Noir) como havia em outras metrópoles europeias. O Código Negro foi instituído pelo Rei da França Luís XIV, em 1685, e trazia um conjunto de disposições legais que deviam ser cumpridas pelos negros.
Segundo ele, no Brasil era diferente, pois havia uma consulta do Conselho Ultramarino para o rei se manifestar. “O rei se manifestava emergencialmente, não havia um código negro”, disse.
O especialista ainda observou que, após a abolição da escravidão até a promulgação da Constituição Federal de 1988, não houve mais nenhuma menção aos quilombos na legislação do país. “O quilombo ficou 112 anos desaparecido e aparece depois como remanescente'', lamentou.
Na sequência, o desembargador federal aposentado, Manoel Lauro Volkmer de Castilho, apresentou o tema “Desapropriação para Remanescentes de Quilombos - Algumas Questões”.
Inicialmente, ele lembrou que não atuou em nenhum caso que tivesse discutido alguma questão relacionada aos quilombos e à condição jurídica de seus direitos, até a promulgação do Decreto 4.887/2003. A norma regulamenta o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
“Isso revela que eles foram incluídos no ADCT e não no corpo do texto da Constituição como as demais minorias. A explicação é a de que os parlamentares mais conservadores não quiseram isso. que incorporasse ao texto principal, porque poderia contaminar do ponto de vista hermenêutico outras categorias constitucionais. Então, foi mais prudente empurrá-los para o ADCT”, revelou.
No entanto, o magistrado destacou que o texto do ADCT não tem o menor nível hierárquico do que o texto permanente da CF. “Isso não diminui seu valor constitucional. Aliás, ele está relacionado com os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, no corpo permanente”, disse.
Para Manoel Lauro Volkmer de Castilho, o artigo 68 quando diz que, aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir seus títulos, “estabelece um código de direitos administrativos e judiciais que deve ser levado em conta ao tratar essas questões.
“Esse dispositivo contém geneticamente todos os mecanismos que se precisa juridicamente para enfrentar a questão da propriedade dos quilombolas e como se define a identidade, a ocupação, e como se pode exigir do Estado a legitimação e regularização desses remanescentes”, enfatizou.
O magistrado ainda comentou sobre Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) proposta por um partido político conservador que questionava o Decreto 4.887/2003.
“A ação levou mais de dez anos, mas definiu que o decreto era constitucional, porque não estava incorrendo em inconstitucionalidade. Também admitiu o critério da autodefinição da ocupação, valorizando os termos da Convenção 169 da OIT, que consagrou esse tipo de critério. O direito deles é absoluto”, analisou.
MPF - O procurador da República Daniel Avelino Azeredo discorreu sobre o tema “Dando concretude à proteção constitucional da comunidade", em que apresentou o trabalho desenvolvido pelo Ministério Público Federal.
O procurador apontou que há, atualmente, a paralisação dos procedimentos administrativos e uma ordem do Poder Executivo de não avançar na proteção das comunidades tradicionais. Isso se reflete nas ações dos órgãos federais, como o INCRA. O que a gente percebe é uma total paralisação dos procedimentos administrativos que possam tutelar o direito dos quilombolas”, considerou.
Para dar uniformidade aos processos acompanhados pelo MPF, ele informou que o Conselho Nacional do Ministério Público publicou a Resolução 2030/2021, que Disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro junto aos povos e comunidades tradicionais.
Daniel Avelino destacou que o objetivo é manter um diálogo permanente com as comunidades, conhecer a sua realidade com visitas in loco, conflitos existentes de terra, cultura e tradições, com o objetivo de proteger os quilombolas.
O artigo 5º diz que “o Ministério Público deve viabilizar a observância do direito à participação dos povos e comunidades tradicionais e a necessidade de consideração efetiva dos seus pontos de vista em medidas que os afetem”.
Também destacou que o TRF1 tem um acórdão que protege a posse das terras quilombolas. “Ele determina que o INCRA cumpra sua missão constitucional e finalize procedimentos em curso há anos”, disse.
Caducidade - A professora doutora Maria Cristina Vidotte falou sobre o tema “Reflexões sobre a Caducidade de Decretos Quilombolas”, em que tratou de decisões judiciais que estão considerando a caducidade de decretos que declaram como de interesse social as terras quilombolas para fins de desapropriação.
Ela explicou que de acordo com o Decreto 4.887/2003 o prazo de conclusão de todos os procedimentos para titulação das terras quilombolas deve ser realizado em, no máximo, dois anos, mas que essa interpretação não condiz com a realidade de tramitação dos processos em curso. Por isso, segundo ela, não há que se falar em caducidade após dois anos.
“A desapropriação precisa de recursos financeiros e cada realidade é uma realidade. Não há como se falar em decadência porque é um processo demorado, que envolve várias etapas, um processo democrático em que são ouvidas todas as instituições, interessados, e tem prazo para contestação. Um processo complexo”, explicou.
Também relatou que a Advocacia-Geral da União já se manifestou, em 2012, por meio de parecer que nesses casos em que o prazo de dois anos não é cumprido não existe a caducidade.
Por fim, a coordenadora do Sistcon, desembargadora federal Gilda Sigmaringa Seixas, afirmou que o evento foi um marco histórico para o TRF1 e que sem acordos e conciliação não será possível resolver os conflitos.
“Esses problemas dos quilombolas não são só mais do TRF1, mas de todos os órgãos envolvidos e agentes públicos. Formamos uma rede de sustentabilidade em prol dos kalungas e precisamos encaminhar esse material do workshop. Os problemas existem e precisam ser solucionados. É preciso pensar em uma nova justiça. A justiça que queremos a partir de agora”, avaliou.
PG
Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região