As lições tiradas da experiência de criação de cotas no fundo partidário para o financiamento de
candidaturas femininas, com seus sucessivos questionamentos judiciais e desvios, transcendem o tema da participação das
mulheres na política eleitoral e mostram que, no campo das disputas por equidade, tem razão Eduardo Galeano quando diz que um passo em direção à utopia pode fazer com que ela pareça se afastar um pouco no horizonte. Infelizmente, a existência de políticas afirmativas nem sempre tem garantido a concretização de avanços reais.
As dificuldades enfrentadas pelas mulheres na tentativa de chegar ao Poder Legislativo mudam de roupagem, mas também se fazem presentes no Poder Judiciário.
O Brasil observa um cenário de quase estagnação nas estatísticas sobre o assunto participação feminina. Entre 2013 e 2018, saiu-se de um patamar de 36% de juízas para os atuais 38%. Na Justiça Federal, no mesmo período, as mulheres foram de 26% para apenas 32% da força de trabalho. Em tribunais como Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, nem sequer atingem 20% da atual composição. Evidenciando desigualdades ainda mais estruturais, juízas negras constituem 1,75% da magistratura.
Em 2018, tentando modificar esse cenário, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) instituiu uma inovadora política nacional de incentivo à presença de mulheres em cargos de chefia, bancas de concurso e eventos científicos do Judiciário. No dia da aprovação dessa medida, a ministra Cármen Lúcia lembrou que “há tribunais com 57 desembargadores e uma mulher. Não é algo que ainda podemos desprezar”. Em verdade, existe tribunal que, desde 1988, não assistiu à promoção de nenhuma juíza de carreira à segunda instância.
O “teto de vidro” que dificulta a chegada das mulheres aos postos mais altos do Judiciário não pode ser compreendido como obra do acaso e nem depende apenas da passagem do tempo para ser removido.
No primeiro 8 de março de vigência da resolução nº. 255 do CNJ, continuam enormes os desafios institucionais para que ela saia do papel.
A base masculina da magistratura e o sistema de promoção que alterna antiguidade e merecimento tornam especialmente lenta a mudança de panorama. Promovem-se como mais antigos obviamente aqueles que sempre estiveram vestindo a toga. Já as promoções por merecimento, mais marcadas por dinâmicas políticas, tendem a promover um percentual ainda menor de mulheres ao cargo de desembargadora, segundo dados do Conselho da Justiça Federal.
As mulheres que ascendem raramente ocupam as vitrines de eventos, comissões e celebrações. E assim são mantidas as antigas engrenagens que restringem a presença feminina no espaço público. Se poucas mulheres são vistas, menos ainda são as que conseguem ser lembradas.
A baixa representatividade se traduz em políticas públicas igualmente rarefeitas. Poucos tribunais brasileiros contam com comitês voltados à promoção de igualdade de gênero e mecanismos para o adequado tratamento de denúncias de assédio sexual.
O Poder Judiciário nacional tampouco dispõe de um protocolo amplo que oriente o julgamento com perspectiva de gênero e seja capaz de estabelecer, em áreas essenciais, o olhar que o sistema de justiça precisa dedicar às mulheres em situação de vulnerabilidade. A população que não se enxerga nas salas de audiências e sessões pode ser invisível também aos olhos de quem a julga.
Como uma cabeça num corpo estranho, a mesma Justiça que celebra a inovação em aparatos tecnológicos e de solução de processos deixa de assumir a vanguarda no quesito equidade. Nessa contradição, põe-se em xeque o sucesso de mudanças sociais e normativas que não podem esperar.
Clara Mota Pimenta Alves
Juíza federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e doutoranda em direito pela USP
Gabriela Azevedo C. Sales
Juíza federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e doutoranda em direito pela USP