Realizada no último dia 7 de fevereiro, dia em que se recorda em âmbito nacional a Luta dos Povos Indígenas, a primeira reunião da Rede de Inteligência da 1ª Região (Reint1) em 2023 debateu a atuação da Justiça Federal diante da atual, mas também histórica, situação dos povos indígenas na região de Roraima, afetados pelo garimpo ilegal, com foco no povo Yanomami.
Convidados pelos juízes federais de Roraima, o procurador da República Alisson Marugal e o médico sanitarista e doutor em Saúde Pública, Paulo Basta, participaram do encontro. Ambos atuam diretamente com ações em prol dos povos indígenas, e apresentaram, no evento, o desafio que o garimpo ilegal representa para essa população e como tem sido efetivamente percebida a atuação da Justiça Federal.
A situação dos povos indígenas em Roraima, especialmente dos Yanomamis, tem tido grande repercussão nacional e internacional em razão das denúncias envolvendo o crítico estado de saúde dessa população bem como as problemáticas ambientais, que, dentre os outros aspectos, têm apontado para uma crise humanitária e exigido, também da Justiça brasileira, ações efetivas.
Tema secular e raízes históricas - Ao abrir a primeira reunião da rede no ano de 2023 com o tema voltado aos povos indígenas, o desembargador federal Carlos Augusto Pires Brandão, coordenador-geral da Reint1, lembrou que as questões relativas à vulnerabilidade e ao desrespeito do povo Yanomami no Brasil, hoje em evidência, são na verdade parte de um tema secular, advindo dos primórdios da colonização.
“Ainda assim, mesmo os problemas históricos de alguma forma se “atualizam”, e aparecem, diante dos foros e instâncias sociais, exigindo novas respostas”. As reuniões da rede, reforçou o magistrado, possibilitam justamente que os juízes e agentes de toda estrutura que hoje busca dar respostas estratégicas no atendimento dos direitos essenciais (o que inclui o Ministério Público, o Judiciário, a Advocacia e inúmeras outras entidades e instituições) repensem, juntos, a forma como se soluciona institucionalmente essas questões.
Limites e possibilidades de atuação do sistema de Justiça para a proteção dos povos - Primeiro a apresentar, o procurador da República Alisson Marugal apontou alguns dos principais limites e possibilidades de atuação da Justiça Federal em prol da proteção dos povos indígenas frente aos problemas gerados pelo garimpo ilegal.
A respeito especificamente da eficiência das decisões judiciais, Alisson Marugal ressaltou o grande desafio que representa a atuação do Poder Judiciário sem um apoio e engajamento dos responsáveis por cumprir com as determinações. Para exemplificar, ele citou uma ação civil pública ajuizada em 2017 para instalação de bases de proteção ambiental do território Yanomami.
“Nessa Ação Civil Pública foram três bases de proteção etnoambiental (Walo Pali, Serra da Estrutura e Palimiu) e hoje, depois de cinco anos da sentença - obtivemos uma liminar e posteriormente uma sentença proferida pela Justiça Federal de Roraima -, apenas duas delas foram implementadas e uma ainda resta a implementar, que é justamente a base em local com incidência de garimpo bastante violento”, relatou o procurador.
Apesar da multa diária de 10 mil reais determinada pela Justiça Federal, após anos da decisão, ainda assim a base de proteção não foi implementada. Ainda nesse sentido, ele ressaltou que outras ações foram ajuizadas, enfrentando novas questões como a logística aérea, e problemas referentes ao cumprimento das decisões judiciais continuaram a aparecer. Por isso, mesmo um ciclo virtuoso de decisões proferidas não se mostrou suficiente até o momento.
Apesar dessa realidade, Alisson Marugal ressaltou que a atuação da Justiça Federal em Roraima, como a de dar continuidade às operações na região contra o garimpo ilegal, tem se mostrado até mais decisiva e importante para a proteção dos Yanomamis do que, por exemplo, se mostrou a atuação do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709), ainda que tenha sido também fundamental e importante.
“Evidentemente que combater o garimpo exige um planejamento bastante robusto”, apontou. “Mas o que me chama atenção é uma postura de desrespeito em relação às decisões judiciais”, frisou. Para o procurador, isso revela uma necessidade de reflexão sobre como obrigar de fato o cumprimento dessas decisões judiciais, para além dos mecanismos de multa. E nesse sentido, ele aproveitou para agradecer à Reint1 por possibilitar esse importante debate de repensar os processos judiciais de grande impacto, que na visão dele exigem medidas mais enérgicas também do Poder Judiciário.
Atuação mais do que necessária - O médico de formação Paulo Basta, envolvido há mais de 25 anos com a realidade dos povos indígenas e atualmente pesquisador em saúde pública pela Fundação Oswaldo Cruz, por sua vez, também apontou a necessidade de se aprimorar as atuações institucionais tendo em vista o grave quadro dessa população que é histórico e se agrava a cada ano.
Tendo se dedicado, nos últimos dez anos, a estudar especialmente os impactos promovidos pelo uso indiscriminado de Mercúrio nos territórios indígenas da Amazônia, Paulo Basta, em sua explanação destacou, entre outros pontos, o problema estrutural do garimpo. “A ponta desse iceberg é o Mercúrio”, salientou. “Mas ele é só a ponta do problema”.
Dentre a pirâmide de questões que envolvem os impactos do garimpo na região e nos povos indígenas, além do mercúrio estão: a devastação da floresta; a alteração do ecossistema; a ameaça às espécies nativas da fauna e da floresta; toda a rede de suporte para o garimpo (que envolve maquinário, combustível, comércio, drogas, prostituição, armas, violência etc); impactos na organização social das comunidades afetadas; alterações nos padrões alimentares; capacitação e precificação dos bens de consumo em gramas de ouro; alteração do perfil epidemiológico e espalhamento de doenças.
Assim, ele apresentou dados diversos que mostram a gravidade da situação, incluindo os relativos à desnutrição e óbitos de crianças indígenas no país, e relacionou-os à complexa existência do garimpo ilegal que precisa ser urgentemente combatido.
Juizados Especiais Federais: um possível caminho? - Aberto espaço para debate, a juíza federal Rosimayre Gonçalves de Carvalho observou que as apresentações demonstraram que apesar de ter sido enfrentada a situação por meio das ações civis públicas, ainda assim se chegou no atual cenário tão comprometedor da humanidade. Nesse sentido ela indagou aos outros presentes, em especial ao procurador Alisson, como o Poder Judiciário pode aperfeiçoar a prática que adota, já que tem atuado, respondido às demandas, promovido os diálogos e ainda assim não tem apresentado uma solução definitiva.
Por sua vez, a também magistrada da 1ª Região Flávia de Macêdo Nolasco levantou o questionamento sobre a possibilidade de uma melhor atuação dos Juizados Especiais Federais fora do nível das ações coletivas como também buscar atender às demandas reprimidas desses povos que, muitas vezes, também têm um acesso limitado à Justiça. Tanto o procurador quanto o médico se posicionaram no sentido de valorizar a atuação, mas pontuando para a necessidade de se cuidar desse processo para que os indígenas não sejam expostos a situações de vulnerabilidade também nos ambientes urbanos, quando há a necessidade de deslocamento.
O coordenador dos trabalhos da reunião da Reint1 desse dia, juiz federal Bruno Hermes Leal, encerrou o encontro agradecendo a participação dos convidados e outros presentes, salientando a convicção de terem recebido interlocutores privilegiados e com incomparável disposição de informações qualificadas. Durante o evento ele lembrou ainda que a Reint1 poderá promover outros debates, com outros agentes, sobre o mesmo tema, inclusive para tratar melhor da questão relacionada a possibilidade de atuação pelos JEFs.
Também marcaram presença no encontro da Rede as desembargadoras federais do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) Maria do Carmo Cardoso e Daniele Maranhão, entre outros magistrados da 1ª Região, especialmente da Seção Judiciária de Roraima.
AL
Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região