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17/10/2023 10:04 - INSTITUCIONAL

Rede e Esmaf promovem reflexão sobre direito penal e populismo

 Em ambiente virtual, magistrados se reuniram nesse momento de formação tendo como ponto de partida a palestra do professor italiano Raffaele de Giorgi.

Raffaele de Giorgi é professor emérito da Universidade de Salento, na Itália. É também coordenador e fundador do Centro de Estudos do Risco da Universidade de Lecce e doutor em filosofia na Universidade de Roma La Sapienza.

No encontro, o convidado propôs aos juízes e juízas federais presentes a reflexão sobre o populismo penal e a falácia da segurança a partir da compreensão do conceito de povo. Para isso, apresentou algumas das principais concepções e análises históricas e filosóficas dos últimos séculos relacionadas ao assunto.

O professor foi recebido pelo coordenador da Reint1 desembargador federal Carlos Augusto Pires Brandão, que contextualizou ao palestrante a realidade da Justiça Federal da 1ª Região e o papel da Rede no aprimoramento dos serviços prestados. “Nosso tribunal tem dimensão continental, e em temas penais resolve questões referentes, por exemplo, ao tráfico internacional, aos crimes ambientais, aos crimes que emergem nos processos econômicos e sociais que impactam a região, crimes contra a administração pública, em questões relacionadas a omissões ou fracassos de políticas públicas”, disse o coordenador da Reint1, que ressaltou o papel das políticas públicas na 1ª Região. “Temos um Tribunal continental e múltiplo, e também é nosso papel perceber a complexidade no tratamento dessas questões”, salientou.

Sobre a escolha do tema, a desembargadora federal Gilda Sigmaringa Seixas, diretora da Esmaf, destacou que se têm observado uma tendência emergente nas democracias globais de recorrer ao direito penal para “moldar” o consenso político. “Freqüentemente, a política busca instigar medo às populações já confusas pela complexidade dos temas atuais, apontando inimigos e ameaças”, afirmou a magistrada.

Para a diretora da esmaf, esse procedimento está intensificado pelo cenário atual. “Tal tendência não apenas aumenta a distância entre a realidade e a percepção mas também permite à política manipular essa percepção que muitas vezes mascara a realidade”, acrescentou, afirmando ainda que esse cenário faz confrontar muitas vezes com o desafio de compreender como o sistema jurídico equilibra sua natureza cíclica utilizando diversas estratégias para influenciar a percepção do tempo e do futuro.

“Em um sistema jurídico que funcione adequadamente, a Justiça deve ser, ao nosso ver, transparente, direta e voltada ao bem comum”, afirmou Gilda Sigmaringa Seixas, salientando que uma dependência excessiva da política em relação ao direito penal pode comprometer esses princípios constitucionais caracterizando como inimigos aqueles que desviam das normas.

“O populismo político e penal emergem então como instrumentos que atribuem a sensação de simplicidade à sociologias complexas. Através de discursos meramente retóricos o direito, ao invés de salvaguardar as liberdades universais, é usado para manipular nossa percepção de bem comum”, explicou.

Ao finalizar a introdução do tema, a desembargadora federal ressaltou que a questão principal do encontro era: “Como podemos equilibrar a necessidade de segurança e de proteção com nossos direitos inalienáveis à liberdade de Justiça diante das ameaças do populismo penal?”


Qual é o povo do populismo?
Procurando enfrentar o tema de uma perspectiva diferente, o fio condutor da palestra do professor Raffaele de Giorgi foi a pergunta “Qual é o povo do populismo?”.

Ele propôs que a formação partisse de um caso muito especial, gerado pela leitura de um trecho do capítulo “O Grande Inquisitor”, retirado da obra Irmãos Karamázov, romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski.

“O protagonista dessas páginas de Dostoiévski é o povo”, afirmou o professor. “O povo como poderia ter sido representado no século XVI, o povo angustiado, sofredor, o povo da cidade do ocidente e o povo sem nome, a multidão [...] em que se pode existir e ter reconhecimento sem ser detentor de qualquer subjetividade, a não ser precisamente a que deriva da atribuição e do exercício da lealdade e da sujeição”, salientou, ressaltando ser essa a característica principal desse povo, a submissão, na qual se reconhecem e refletem.

Em sua palestra, o professor destacou principalmente a posição do povo que se entrega aos poderes perante ao terror que enfrenta e a sensação de segurança daqueles para os quais sacrifica inclusive a própria liberdade. “É um rebanho que na escravatura se sente livre do tormento da liberdade que o tornava infeliz”, salientou.

Para ele, foi importante levar à reflexão os participantes por meio do texto de Dostoiévski por entender que obras de arte condensam a visão da realidade em uma forma acessível e permite, a cada vez que são acessadas, novas interpretações e possibilidade de construção.

Nesse sentido, apontou ainda outras leituras que ajudam a compreender o povo do populismo, como os contos “O Duelo” e “Michael Kohlhase”, de Heinrich Von Kleist (em que se manifesta principalmente o caráter de impotência do povo); a obra “O Leopardo”, do autor Tomasi di Lampedusa (no qual o povo reconstrói sua identidade a partir da “transformação constitucional”); a leitura de obras de Machado de Assis, que descreve “a aventura incrédula do povo recompondo-se na sua forma exterior através da experiência da abolição da escravatura”; e ainda “El llano em llamas”, de Ruan Rulfo, onde o povo e a multidão tácita, escondida, experimenta como o direito se torna seu próprio carrasco perante o destino dos indivíduos sem destino.

O que ele destacou em relação à obra de Dostoiévski foi justamente o fato de o povo ser representado nela como um povo de crentes, uma multidão que se furta à liberdade porque se ajoelha como escrava tanto diante de seu salvador quanto diante de seu carrasco.

“A liberdade é uma questão de consciência. Diz respeito à singularidade do particular. A diferença, a capacidade de querer, de escolher, de agir, de se orientar: esta liberdade seria insuportável para a fraqueza do particular”, explicou. Para ele, o povo acaba se realizando enquanto povo a partir da negação dessa diferença existente, e do esquecimento de um “eu”, e do fato de alguém se apoderar da liberdade que pertenceria a esse povo.

“Não há nada mais encantador para o homem do que a liberdade da sua própria consciência”, citou o professor essa fala do inquisidor de Dostoiévski. “Mas não há nada igualmente atormentador”, concluiu a leitura dessa marcante passagem da obra do autor russo.

Sobre esse ponto, ele ressalta que a relação do povo do populismo é aquele no qual não há lugar para diferenças, que acabam “tendo que ser negadas”. E são as ideologias criadas por aqueles que tomam o poder que acabam servindo para esse povo “desparticularizado”, que precisa de alguém que “pense por eles”. “O povo sente-se povo quando está seguro sob a força, sob a direção, sob a autoridade”, frisou.

Além desse aspecto da obediência de entrega da própria liberdade, é o terror do castigo que se impõe, especialmente por sobre aqueles que se desviam, que seguem um caminho diferente – pois o diferente “ameaçaria” o rebanho e clamaria por intervenção daquele ao qual o povo se submete.

A punição então é vista como aquilo que é capaz de libertar o povo do mal, e é moldada por aqueles que sustentam o poder – em geral as figuras de autoridade e outras que se impõem sobre as crenças do povo.

Intolerância
Explorando todas as características de um povo que se alimentaria das próprias superstições e enganos, o professor Raffaele de Giorgi afirmou que a condensação da intolerância é o que alimenta o cenário do populismo, que teria como origem a criminalização e rejeição do outro, que é tido como infiel e cuja simples presença interfere e atrapalha o rebanho.

Em sua palestra, Raffaele de Giorgi trouxe reflexões de pensadores como Voltaire, John Locke e Thomas Hobbes, e reforçou a ideia de que esse povo do populismo neutraliza a consciência dos particulares e constrói o outro como ameaçador, pois quanto mais diferentes e numerosas forem as crenças, menores seriam os poderes de cada uma.

Representação do Indivíduo
O professor convidado fez ainda um panorama para tentar reconstruir uma filosofia da história representação do indivíduo ao longo dos últimos séculos, e das formas de atuação do indivíduo como sujeito.

Traçou considerações sobre a ideologia punitiva ligada ao contexto do populismo penal, falou sobre a importância do movimento iluminista na libertação de alguns paradigmas passados e na relevância do movimento contra iluminista como o cerne para entender o populismo penal dos dias atuais.

Raffaele de Giorgi abordou ainda como as operações da comunicação acabam por se transformar em operações sociais. Para o professor, os populistas no direito penal, na política apresentam suas posturas defendendo interesses de proteção, segurança social, e é justamente nessa defesa que reside o conteúdo falso de sua política, que consiste na construção de uma realidade falsa para garantir proteções contra os “males” construídos.

O desafio do populismo é que os próprios condutores de uma maneira política de agir baseada nele não têm controle das conseqüências das decisões e posições tomadas.

O analfabetismo forte, concluiu ainda Raffaele de Giorgi, é um dos grandes facilitadores para o crescimento de um populismo perigoso.

Participaram do encontro da Reint1 também os desembargadores federais Ney de Barros Bello Filho e Roberto Carvalho Veloso. Ao final da palestra do professor Raffaele de Giorgi, o desembargador federal Ney Bello agradeceu pela pontualidade das discussões, e pela capacidade do professor de trazer à contemporaneidade o tema em debate e também levantar criticamente os pontos referentes a assunto tão importante.

AL

Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região


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