Para interpretar a justiça social no Brasil a partir da experiência da Guerra de Canudos, ocorrida em fins do século XIX, esteve presente o professor titular da Universidade Federal do ABC, Dr. Jessé Souza, escritor e sociólogo. Também Luiz Paulo Neiva, diretor do Campus Avançado de Canudos e professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), compareceu ao encontro para apresentar estudos sobre a formação de Belo Monte, arraial fundado por Antônio Conselheiro, que pode ter abrigado milhares de pessoas ainda no século 19.
Houve participação especial ainda de músicos, poetas e outros artistas, a exemplo do compositor do hino do município, Bião de Canudos, o poeta Zé Américo e o cineasta Antonio Olavo.
Ao abrir o encontro, o coordenador da Rede de Inteligência da 1ª Região (Reint1), desembargador federal Carlos Augusto Pires Brandão, destacou o momento de avanço da Justiça Federal para as fronteiras últimas da nacionalidade. “Dos mais de 1.690 municípios da 1ª Região, a Justiça Federal está presente em menos de 80 municípios. Temos situações em que o município dista a mais de mil quilômetros da sede da Justiça Federal”, lembrou.
No entender do magistrado, no qual em uma sociedade complexa as respostas precisam também ser complexas, as ações não podem ser feitas de maneira solitária. “Em face da grandeza territorial do Brasil e da complexidade dos desafios sociais da Região, a Primeira Região tem de ousar na criatividade, trazendo a cooperação de outras instituições, dos demais segmentos do sistema judicial e das entidades federativas”, afirmou Brandão.
No mesmo sentido, a diretora da Escola de Magistratura Federal da 1ª Região (Esmaf), desembargadora federal Gilda Sigmaringa Seixas, que realizou o encontro em parceria com a Reint1, manifestou sua visão de que é preciso o diálogo interinstitucional para não só reduzir o número de processos como evitar judicializar as demandas.
Canudos: uma realidade histórica perene – “Canudos não é um fato isolado. Canudos tem uma continuidade hoje em dia”. Com essas palavras, o professor Jessé Souza deu início a sua explanação, buscando mostrar que para além do fato isolado do massacre nesta região da Bahia, há vários outros acontecimentos no decorrer da história do Brasil e na atualidade que espelham o acontecido em Canudos – embora sob outras máscaras.
A centralidade da apresentação do professor Jessé Souza esteve ligada ao contexto da escravidão, que ele considera como tendo sido o berço do Brasil e sob o qual o país permanece, embora com outras feições.
Ele fez um resgate temporal a partir de 1888, quando é abolida a escravidão de maneira considerada apenas formal, pois, segundo disse, o país fica marcado por um abandono da população negra e por leis construídas posteriormente para criminalizar o negro. Construção essa que teria deixado marcas, na qual se via artificialmente o negro como criminoso, e compunha um processo de desumanização no qual essa população seria (e ainda é) vista como inferior.
Nesse processo de inferiorização dos negros, o professor Jessé mencionou o deslocamento dessas pessoas de um ambiente escolar mais qualificado, afastando-os de conhecimentos relevantes no contexto de um sistema capitalista – em que o conhecimento é a moeda de troca e aquele que não tem conhecimento mal pode ser explorado, restando-lhe a redução a um papel muscular e reduzido a utilização do corpo. Excluindo, portanto, o caráter próprio ao espírito, em uma dualidade em que o espírito está acima do corpo, afirmou.
O professor Jessé Souza também abordou o racismo em sua palestra, principalmente ao falar do contexto de legitimidade do poder, marcado, no Brasil, por noções racistas.
Pós-abolição, o racismo seguia explícito e aberto, afirmou o professor. A partir de 1930, com intervenções do governo Getúlio Vargas, passa a ser proeminente no país o chamado racismo “cordial”, no qual não se manifesta publicamente e sem punições as concepções racistas – embora elas não deixem de existir. “Obviamente o racismo implícito é mais difícil de ser criticado, mas existe até hoje”, enfatizou Jessé Souza.
Na vivência de um racismo social, outras formas de oprimir a população negra e também os pobres, os mais vulneráveis, esteve a criação de uma noção do brasileiro como corrupto – não qualquer brasileiro, mas justamente aquele que não é nem da elite que se entende americana no País nem da classe média de origem europeia.
Para Jessé, também essa concepção do povo brasileiro como corrupto criminaliza a democracia, o voto e a liderança popular. Segundo o professor, é em todos esses fatos que Canudos continua se repetindo, a exemplo do massacre no Carandiru, anos depois. “O homem cordial reedita, contra as mesmas pessoas, a ideia de que o país é a lata de lixo do mundo”, reforçou. “A questão racial é a base do atraso brasileiro, que substitui o racismo sem usar [necessariamente] a [palavra] raça”, acrescentou.
Por uma justiça consciente e inclusiva – Ao final da fala do professor, foi aberto um espaço para a participação dos magistrados. A juíza federal Rosimayre Gonçalves de Carvalho ressaltou a importância de uma moldura teórica, científica e histórica para ajudar a aprimorar a percepção da realidade e perguntou ao professor como ele via a participação da Justiça Federal nessas ações em que ela vai a locais distanciados, muitas vezes com culturas muito próprias e distanciadas do padrão social da instituição.
O professor Jessé Souza reconheceu o valor da preocupação da magistrada, como sinal de respeito às comunidades, mas opinou também que essas participações têm sido fundamentais, pois muitas vezes essas pessoas distantes jamais tiveram qualquer acesso à Justiça ou, quando tiveram, têm somente o da Justiça Criminal – e não o dessa Justiça que garante direitos sociais ou assistenciais, por exemplo. “O que fazem levando justiça rápida para essas pessoas é absolutamente revolucionário, algo que tinha que acontecer”, afirmou.
Para ele, essas ações podem ajudar as comunidades a perceber que a Justiça é também para ela, não somente para oprimi-la ou encarcerá-la, mas também para ela quando precisa.
Entre Canudos e Belo Monte – Já o professor Luiz Paulo buscou esmiuçar, em sua explanação, o que seria pensar uma “nova batalha em Canudos”, considerando esse importante acontecimento histórico que interessa a intelectuais e estudiosos diversos, desde Euclides da Cunha a Manoel Benício, os primeiros a denunciar fuzilamentos em Canudos.
Segundo Luiz Paulo, 2 grandes dilemas vinculam essa nova batalha. O primeiro deles está ligado à tentativa de preservar a memória, a história desse Massacre e o segundo ao combate à pobreza e a desigualdade ainda tão presentes em Canudos e no semiárido brasileiro.
“Em ambas as dimensões, observa-se a ausência ou insuficiência de iniciativas aptas a alcançar os objetivos declarados pelas políticas públicas em todos os níveis”, afirmou. “Nessa nova batalha, é pensar Canudos desde os primórdios, a formação, o desenvolvimento e a destruição da comunidade de Canudos ficaram na história do Brasil. Belo Monte permanece até hoje como motivo de interesse e debates”, acrescentou. “Os horrores da guerra e a destruição de Belo Monte oferecem oportunidades para estudar o quão a elite brasileira foi incapaz de compreender e assimilar o semiárido como brasileiro, como boa parte da nação contemporânea, porque a partir de 1985 se revive os desafios dessa nova batalha”.
Nesse sentido, o professor falou em detalhes como vivia a comunidade de Canudos, e também sobre o seu fundador, Antonio Conselheiro. Falou ainda sobre a guerra, o caráter “messiânico” do arraial Belo Monte, que recebeu esse nome posteriormente, quando os seguidores passaram a viver com o fundador. Embora o número de habitantes de Belo Monte seja impreciso, acredita-se que se chegou a ter cerca de mil ou mais pessoas vivendo no local.
O professor Luiz Paulo também narrou um discurso final de Antonio Conselheiro pouco antes de sua morte.
“Meu Sertão” – O último encontro da rede também proporcionou, para além das reflexões acadêmicas, um encontro cultural diversificado. Ao vivo, o poeta Zé Américo declamou seu poema “Meu Sertão”, que escreveu para mostrar a beleza do sertão em contraponto às misérias tão ressaltadas pelo pensamento comum ou noticiado. Sua poesia, rica em imagens que aludem às belezas naturais e culturais da região, se encerra com um convite para quem não é de lá:
“(...) Mas é bonito de ver
Um vaqueiro a boiar
E no sol de meio-dia
A Catingueira está lá
No Sertão acolhedor,
Seja pobre ou doutor,
Pode vir nos visitar”.
Em seguida, o cineasta Antonio Olavo, que dirigiu o documentário PaixÕ e Guerra no Sertão de Canudos, falou brevemente sobre a nacionalidade do tema e a pessoa de Antônio Conselheiro, mencionando também alguns fatos curiosos de sua vida, como ter sido ele responsável por construir mais de 20 igrejas e muitos cemitérios no País.
À época em que Conselheiro teria mobilizado pessoas de quase todo o Nordeste, predominava uma realidade de fome e miséria ligada ao contexto dos latifúndios. E a proposta de Belo Monte era um enfrentamento dessa miséria.
Um sobrevivente do Massacre teria dito, mencionou o professor: “Grande era Canudos no meu tempo”, ao falar sobre a busca por construir uma sociedade justa e solidária.
Antonio Olavo destacou ainda o posicionamento de Antonio Conselheiro contra a escravidão, a defesa das pessoas daquele ambiente por ele criado e relacionou essa forte personalidade a outra personagem relevante da história brasileira, Rui Barbosa, cuja estátua está presente no Fórum que recebe o seu nome na Bahia.
Ao encerrar, finalizou dizendo que a História do Brasil está permeada de grandes e maravilhosos acontecimentos, e citou outros eventos na história da Bahia.
Encontro com o jurisdicionado – O corregedor regional da Justiça Federal da 1ª Região, desembargador federal Néviton Guedes, se pronunciou ao final do encontro parabenizando a iniciativa e ressaltando que se tratava de um “momento maior do Tribunal”, encontrando-se com o jurisdicionado distante.
Também a desembargadora federal Maria do Carmo Cardoso se manifestou, em referência especial à poesia apresentada por Zé Américo. “Nós temos que trazer as coisas lindas, maravilhosas que nós temos na Primeira Região além dos problemas judiciais que tenhamos, da carga pesadíssima de processos, nós temos coisas bonitas que devem ser mostradas”, afirmou a magistrada.
Ao final do encontro, o desembargador federal Wilson Alves de Souza salientou que a estratégia de reunir a Rede com a Escola de Magistratura tem se mostrado fundamental pela possibilidade de abarcar esses temas e proporcionar reflexão aos juízes. “Nossas decisões são decisões que refletem plenamente na sociedade. O TRF1 tem em todas as áreas temas muito sensíveis”, afirmou. “Todas as nossas decisões têm que ser pensadas com os impactos que elas vão ter. O ponto de partida de Canudos revela que o Brasil não é um país pacífico. O Brasil é [também] uma história de guerras”, acrescentou.
Em relação à Justiça Social, ele mencionou a desigualdade social intensa no País. “Temos a felicidade de viver nele, mas ao mesmo tempo, o Brasil é um país que é um amontoado de estado de coisas inconstitucionais. E a gente tem que pensar nas previsões, na questão da educação de qualidade, direitos sociais – sempre devendo às comunidades mais vulneráveis”, reforçou o desembargador federal. “O tema é importantíssimo para que os nossos magistrados reflitam nas suas decisões”, concluiu.
AL
Assessoria de Comunicação Social
Tribunal Regional Federal da 1ª Região